sábado, 29 de agosto de 2020

A morte na visão budista

Eu gostei tanto da conversa que a fisioterapeuta Carla Oda teve com o monge budista irlandês Stephen via Instagram (em 27/07/2020) que a transcrevi, editei e acrescentei um texto de abertura. O resultado está abaixo.




Mistério no ar



A morte na visão budista



Um chá aqueceu o frio de 14° Celsius em São Paulo, na noite de 27 de julho de 2020, quando um papo profundo sobre o maior mistério da vida foi conduzido com leveza. A convite da fisioterapeuta Carla Oda, o físico irlandês Stephen Little Manjupriya, monge ordenado pelo budismo, falou com mansidão sobre a morte. A conversa, iniciada às 19 horas, ao vivo pelo Instagram, durou 55 minutos.

Formado no método Breathworks, na Inglaterra, e por Michael Chaskalson, especialista em Mindfulness, Stephen é radicado no Brasil há 18 anos - onde faz trabalhos de pesquisa e consultoria na área. Palestrante experiente no ensino da prática de Mindfulness, é instrutor de programas e workshops focados em saúde, bem-estar e inteligência emocional em liderança. O curso de Mindfulness que ele desenvolveu (para instituições, empresas e ONGs) passou por uma pesquisa rigorosa e os resultados foram publicados na revista científica suíça Frontiers, em 2018. Em seu espaço, Stephen realiza ainda o curso de redução de estresse baseado em Mindfulness, além de ser professor da School of Life e trabalhar com os pacientes com HIV do Hospital Emílio Ribas.

Em março deste ano, assim que viu a pandemia chegar ao país, ele criou o Retiro Urbano, “um espaço de conexão consigo mesmo e com o outro durante o isolamento”, ele define. São duas sessões diárias de meia hora cada uma (via Facebook ou Instagram) com meditação guiada ao vivo, intercalada por histórias de vida, ensino de Mindfulness, prática de consciência gentil e, mais recentemente, até o “fazer nada”. É quando Stephen mantém o olhar fixo na câmera e espera o tempo passar junto com o público. “Fazer nada por uns minutos é uma mini-morte”, ele costuma dizer em seu português fluente.

Na conversa a seguir, Stephen contou um pouco sobre as origens do budismo e sua visão de impermanência, esclareceu que a tradição cita outras pandemias ocorridas no passado e deixou o convite para quem quiser: “Sim, é possível se preparar para a morte”.


Carla Oda - Boa-noite. Que bom te ter aqui!

Stephen Little Manjupriya - É uma honra!

CO - Eu fiquei muito feliz que você aceitou falar sobre a morte na visão do budismo. Estamos vivendo um período em que ela está muito presente na nossa vida com essa pandemia. E a morte ainda é um tabu - principalmente no Ocidente. Então eu queria ouvir você a respeito do budismo para começar. O que é o budismo?

SLM - O budismo começou com o Sidarta Gautama, que era um rapaz casado, com filho, que começou a perceber uma inquietação no ser humano. Ele ficou bem transtornado com uma percepção do impacto não saudável no povo dele, de uma inquietação profunda. Ele viu, em guerras, irmãos queridos atacando outros para matar. O que acendeu dentro dele, no transtorno, foi uma questão. Mais tarde como Buda, ele falou que a busca dele começou na juventude quando ele percebeu, dentro dele, embaixo da inquietação, um espinho dentro de uma ferida. Daí ele foi buscando um caminho nas florestas, abandonando a vida doméstica pra chegar nesse espinho, nessa ferida. Então é uma história de uma cura interna porque mais tarde ele descobriu que o espinho dentro da ferida é a nossa dualidade. Vivemos, segundo o Buda, na dualidade. Vida e morte são uma dualidade. O curioso sobre o budismo é que o Sidarta buscou a fonte desse sofrimento, dessa inquietação, e se curou. Essa é a iluminação. E ele passou 40 anos transmitindo um caminho para os outros. Então o budismo é uma transmissão, é uma comunicação entre uma pessoa e outra. Essa característica é super importante na nossa tradição: é a transmissão de um caminho passo a passo, com passos regulares, para o ser humano, assim como Sidarta, chegar no espinho, na ferida, e entrar num processo profundo de cura. Outra coisa que a gente pode ver é que na essência do insight do Buda, não é a dor da perda ou da morte ou da mudança que faz o estrago, que faz o sofrimento. É como eu lido com a perda, como eu lido com a impermanência ou a instabilidade, que faz eu sofrer. Então a mente, em budismo, é central. E é por isso que budismo é muito associado com meditação que, praticada diariamente, é uma chance de pôr as mãos na massa, na fonte do problema. Nesse contexto, o resto da nossa conversa fica mais suave porque tudo vem dessa percepção de um homem, 2.500 anos atrás, de uma inquietação humana diante das mudanças. E ao invés de falar para os outros durante 40 anos “ó, fique calmo”, ele não fez isso. Porque ele sabia que isso não funciona. Ele mostrou o caminho para descobrir as condições subjacentes que apoiam aquela inquietação [diante das mudanças]. E é um caminho para chegar lá, ao invés de uma técnica rasa, tipo “fique quieto aí”.

CO - Seria muito fácil.

SLM - Yeah, tipo “se vira”. Imagine uma pessoa que está perdendo uma pessoa querida e a mensagem de uma autoridade é: “Ah, eu não consigo evitar mortes, se vira”. É horroroso. É horroroso receber aquilo!

CO - Essa pandemia trouxe a morte de uma forma muito impactante. Muitas famílias estão se despedindo dos seus familiares, a nossa rotina anterior não é mais a mesma, tudo mudou muito e a gente tem vivido essa morte diariamente. Não só a morte física, mas as nossas perdas, né. Como podemos lidar com a morte de uma forma menos impactante do que está sendo com essa pandemia?

SLM - É um assunto sóbrio. E é curioso porque meu pai - que celebra daqui a umas semanas 80 anos na Irlanda - estava falando que duas pessoas da família dele morreram na gripe espanhola. E não foi na primeira onda, foi na segunda onda. Eu não sei o que eles acharam da segunda onda, o que é a segunda onda, porque demorou dois anos para a segunda onda chegar, naquela época. Então com certeza as coisas têm mudado desde 1918, 1920, e agora. As influências são muito mais rápidas por causa da nossa interconectividade. Mas dentro da tradição budista, a gente vai lendo os relatos antigos e vai vendo que havia pandemias na história. No Tibet, por exemplo, eles tinham.

CO - E existe esse passo a passo que você diz, para eu vivenciar a minha morte de uma forma mais tranquila e para eu conseguir lidar com as minhas perdas? Como o budismo vê a morte?

SLM - Bela pergunta. A morte é onde a gente vai ser testado. É onde a gente está sendo testado. Então emerge da infeliz mas real instabilidade da vida. O lado de como me preparar para a minha própria morte, e daí o outro lado, como eu lido com o fato de que tudo o que é querido, vai embora. Inclusive, talvez já foi, e não vai voltar. Esse é a parte salgada da história: já foi e não tem como essa fase (ou essa pessoa, ou experiência) voltar. Nunca vai ser a mesma coisa. Então tem como se preparar. E tem um terceiro tema que é o que acontece na morte. Existe uma literatura antiga, o livro tibetano dos vivos e dos mortos, que é o mais citado na área sobre os relatos das pessoas que supostamente entraram na fase pós morte e voltaram. Enfim, talvez seria bom começar com a sua pergunta: como se preparar para a nossa própria morte. Eu não sei quantas vezes você já pensou que estava com sintomas de Covid desde março.

CO - Eu não achei que eu tivesse com Covid, não.

SLM - Uau. Olha, que bom! É curioso porque a minha mente, umas três ou quatro vezes, começou a fabricar uns sintomas. “Hum, será?”, especialmente no início. Daí eu vi que era pra passar aspirador na casa toda [ri e volta a ficar sério]. Mas a mente é um fator importante nos preparos. Eu não quero deixar uma mensagem leviana porque não tem uma técnica. Estamos falando sobre o preparo para o maior desconhecido que existe. Então toda a literatura que eu li, e os outros psiquiatras, poucos, que recentemente estão olhando para a questão da transição, estão dizendo que as pessoas que têm uma transição mais suave na hora da morte são pessoas que têm treinado algum tipo de não apego. De deixar fluir, de abrir mão de uma fase e se abrir para o desconhecido. Essa parece que é a característica na base da habilidade humana que mais favorece uma suavidade. Só que quando você olha para a tradição budista, essa suavidade, essa capacidade, não é só um treino psicológico, é um treino ético também. Então esse é super importante.

CO - Por quê?

SLM - Porque parece que a pessoa que tem uma consciência ética leve, vai mais suave. E tem senso comum nisso. Eu imagino que a maioria das pessoas aqui vão concordar na hora, tipo a viagem é mais leve, a jornada é mais leve, se a gente consegue arrumar nossas brigas. Inclusive o Buda falou, “há pessoas que sabem que a morte vai chegar, aquelas pessoas arrumam suas brigas”, esse é uma fala muito antiga do Buda. Então a questão de não só escutar os outros, que é fundamental, mas também de perdoar os outros, faz parte dessa suavidade. Esse é o palco. Eu acho que o dado é que, no Ocidente, muitas vezes a gente começa, inconscientemente, e por bons motivos, transformar tudo na área de saúde emocional em algo psicológico. Nas tradições antigas, sim, tem um lado que é mental mas tem um lado que é ético.Eu não tô falando de culpa. Em budismo, né, remoer, algo com senso de culpa, é pesado. E você não vai ter uma jornada suave, se tá remoendo alguma coisa e não resolveu. E culpa é um estado muito muito pesado e sofrido. É um veneno mental, segundo o budismo. É uma inquietação muito sofrida não baseada em muitos fatos. 

CO - Quais as práticas que ajudam?

SLM - Aprender a habilidade de escutar é uma delas. E escutar não é aquele escutar ativa, é escutar sem precisar produzir, não tem uma criação acontecendo. É “eu preciso morrer pra receber essa coisa que essa pessoa está dizendo pra mim. Eu preciso completamente abrir mão dos meus preconceitos, pré-fabricações ou ideias ou expectativas, e deixar algo entrar para entender esse outro ser humano. E entender bem”. Esse é uma mini-morte. E tem oportunidades o dia todo para isso. Então esse é uma das práticas. Outra prática é fazer nada. Ou como aqui no Brasil é chamado, o nadismo. Não é contemplar algo, não é meditar, é ficar inútil. É morrer para o mundo. Para que a gente perceba e renove aquele percepção de que “o mundo não precisa de mim”. Mas quem quer fazer? Wow, a gente tem uma galera nas lives que vem e gostam. Mas confesso que na hora que a gente começou a oferecer muito essa prática de fazer nada, eu não ligo, mas os números caíram. [ri] Outra coisa que ajuda é tomar responsabilidade pelos nossos atos e não se defender tanto. Tem uma outra mini-morte, é tipo, não é culpa, é descobrir qual é minha parte nessa confusão. E uma outra mini-morte ainda é mudar um hábito. Mudar um hábito. Aquele gás que vem quando a gente deixa um hábito que atrapalha pra trás e realmente avança. Na tradição, essas mudanças são chamadas mortes espirituais. E elas favorecem muito, no futuro, o acúmulo da característica que a pessoa precisa para aquela passagem suave. 

CO - Eu escutei uma vez uma frase que eu gostei bastante: “toda escolha tem um luto”. É como se a gente fosse vivendo essas mini-mortes no dia a dia para se preparar para essa morte que vai chegar, a passagem?

SLM - Yeah. Sim. Essa é a grande sabedoria. Eu vivencio isso todo dia quando fecho os meus olhos. Minha mente, estou treinando para ficar com a respiração, mas ela é que nem uma criança que quer ficar no videogame. Então preciso arrastar ele de volta para o “aqui agora”. E daí o luto é: “o que eu quero?”.

CO - E o que acontece na morte? Como é essa experiência de morrer, segundo essas pessoas que morreram e descreveram?

SLM - Recentemente, eu estava lendo Dhammapada, que é o relato mais antigo do Buda - e o mais fiel - e olha, essa frase, que eu já li várias vezes, entrou. Sabe quando finalmente entra? Escuta, é forte o que ele fala. Essa é a palavra antiga do Buda: “Em breve, este corpo, ausente de consciência, se deitará abandonado sobre a terra como um tronco inútil”.

É como se fosse um véu [caindo], eu senti algo que o meu organismo e a minha mente não me deixam perceber durante o dia, a inquietação impede isso. Daí eu senti meu corpo como se fosse uma árvore que vai apodrecer. Já tá apodrecendo, inclusive [ri]. 

CO - Todos nós, né.

SLM - Então, tem um lado que é leve mas tem um lado que é encarar [toca com as duas mãos suas omoplatas]: “Yeah, esse é carne. É carne”. Eu não como carne, mas sei que, se você compra carne, quantos dias, mesmo na geladeira, vai ficar bem? Não é incrível? A consciência deixa essa carne viva o mais que possível, até que não consegue mais sustentar isso. E a gente não vive na geladeira. É muito curioso o que está acontecendo. Então um Covid da vida, infelizmente, perturba tudo isso. A visão do hinduísmo e espiritismo é diferente do que o budismo. A troca da roupa, que é a ideia do hinduísmo e espiritismo sobre a morte, e que uma alma fixa vai continuar, esse não é a visão budista. Existe renascimento, só que o budismo ensina o caminho do meio. É prático mas é um pouco misterioso porque na morte, segundo o Buda, algo que está acontecendo o tempo todo vai entrar numa nova fase. A gente tá renascendo o tempo todo. Eu não vejo que eu sou a mesma pessoa que acordou hoje de manhã. E os elementos que sustentam essa maravilha se desmontam. Então muitas pessoas, quando questionadas com precisão sobre o que é a morte, relatam que têm mais medo da dor que acham que vão sentir. Dependendo do momento, é capaz que vai ter dor.

CO - Mas é um mistério.

SLM - O que acontece na morte depende de muitas condições. O cirurgião cardíaco [americano] Sherwin Nuland, que escreveu sobre isso, falou que pessoas que são atacadas com faca - desculpe, mas acontece - muitas vezes nem sentem dor por causa das endorfinas que o corpo solta naquela hora. Porém, o que a gente pode dizer - e a tradição fala sobre isso - é que a consciência, a mente, muda. Os elementos físicos, o sólido, os líquidos, o ar, o calor no corpo, todos esses somem. Eles ruem porque não conseguem mais manter a forma. E a consciência que ilumina este momento entra numa nova fase, onde até não tem mais um espaço para definir “eu”. Então todos os relatos da vida após morte no mundo, que eu li em estudos, falam que existe uma jornada. Um tipo de processo pós morte. E cada cultura tem imagens específicas que descrevem o que acontece.

CO - Por exemplo.

SLM - Em algumas culturas é um túnel, em outras, é uma luz. Mas tem coisas que são parecidas. Os tibetanos falam - e eu acho que esse é comum em todos - que nesse momento a gente encontra uma luz muito, muito brilhante. E é o momento onde, na jornada, não tem volta. É a morte mesmo. O corpo já foi. E neste momento, o que eles dizem, é que a dualidade da inquietação - que Sidarta viu logo no início -, que era a fonte do problema, se encontra com a não-dualidade, a realidade. Em breve esse corpo vai ser jogado. Já foi jogado. Agora a mente está livre. Em todos os relatos, isso aparece em formas diferentes mas dizendo a mesma coisa. E os relatos pós morte das pessoas que voltaram são relatos de pessoas que chegaram nisso e, por algum motivo, a mente ficou inseguro, o corpo foi salvo - ou alguma coisa - e a mente voltou. Eu não tenho experiência disso. Só que o budismo é poético porque diz que, assim como eu hoje, talvez você, não sou mais a mesma pessoa que quem acordou, no budismo, nessa passagem, quando não tem mais volta [estala os dedos], a mente sem saber como lidar com a não dualidade, se navega naquilo, a nossa própria identidade. E pode amadurecer muito. Então não tem uma ideia de algo fixo que vai reencarnar no budismo. Porque o budismo, o budista, é basicamente o rei de falar: “não tem algo fixo. Mesmo na morte”. Só que, normalmente, o que acontece? No meio daquele desconhecido, da não dualidade, da realidade, a nossa consciência fica, em algum momento, insegura. E tem que se corporificar. Então vai ser atraído por uns elementos, células, e a matéria começa a se materializar de novo, envolta da consciência. Esse é a ideia.

CO - Interessante.

SLM - O Buda gostava de falar sobre isso. Ele falou sobre, por exemplo, uma árvore seca que estava pegando fogo e os galhos, as chamas estão pulando de um galho seco para o outro. E ele perguntava para os discípulos, “olha, aquela chama lá, que está num galho, que está pulando para o outro agora. Aquela nova chama no novo galho é a mesma chama do que a anterior? Ou é totalmente diferente? Ou é nem diferente, nem…”. E ele brincou assim, abrindo a cabeça da pessoa para algo poético, que não dá para descrever de forma científica mas que existe entre os opostos. Então essa poesia do caminho do meio, da vacuidade, e do mistério da mente, para muitos praticantes budistas é a atração primária. Porque basicamente é o som, é o conceito de não apego. É aquilo que traz, no fundo, a paz. E a suavidade que a gente busca, que ajuda a gente a perdoar o outro. Fazer nada, meditar, lidar com vizinhos barulhentos…

CO - Nessa passagem algumas culturas falam das sete semanas, 49 dias. O que acontece nesse período?

SLM - Os tibetanos e o Bardo Thodol - o livro tibetano dos vivos e os mortos que foi escrito por Padmasambhava, no Tibet, e foi perdido, ou escondido, segundo a lenda, e ressurgiu depois -, um livro incrível, descrevem a consciência, a nossa mente, nas várias fases. São seis estados intermediários. Por exemplo, estamos dentro de um estado intermediário, um bardo, é o nome. A gente está entre o nascimento e a morte agora.

CO - A gente está no meio.

SLM - É. Estamos dentro também do bardo entre adormecer ontem e adormecer hoje à noite. Daí, adormecer, o mundo dos sonhos, é um outro bardo, é entre a vigília e a vigília. Os tibetanos falam sobre  estado intermediário depois da morte. E a ideia é que demora 49 dias. Eu não sei se é simbólico, mas o Bardo Thodol traz o ensinamento de como o navegante pode praticar os bardos e também é para uma pessoa querida ler textos para a pessoa recém-falecida, para ajudar a memória da pessoa navegar no mistério. E é lindo, lindo. Posso ler, só uma parte?

CO - Claro, fica à vontade.

SLM - Então, esse é o bardo do momento antes da morte. Eu não sei, eu acho que o português está bom.

CO - Está ótimo.

SLM - Vamos lá. O que é o bardo? O bardo é o estado intermediário, né. [começa a ler] “Agora que o bardo do momento antes da morte surge dentro de mim, eu vou abandonar todo o apego, anseio e todas as percepções contaminadas pelo viés. Devo entrar sem distração no caminho no qual os ensinamentos transmitidos estão claramente compreendidos”. [retorna o olhar para a câmera] Esse é budismo. É muito, muito preciso. É tipo, memória daquilo que tem valor essencial nessas horas de transição. E daí ele continua: “Preciso ejetar a minha própria consciência para a esfera do espaço não nascido. No exato momento em que eu abandonar este corpo composto de carne e osso, eu vou saber que ele não passa de uma ilusão transitória”. É budismo tibetano de primeira. Então daí vai para o encontro com a realidade. E esses são os versos: “Agora que o bardo da realidade surge diante de mim, eu vou abandonar todo o medo e terror, reconhecendo tudo que surge como uma expressão natural da consciência, se manifestando naturalmente por si mesmo, sabendo que os sons, raios, e luzes são meramente fenômenos visuais nascidos desse estado intermediário. Agora que cheguei a esse ponto decisivo, crucial, eu não vou temer estas manifestações naturais, as de idade pacíficas e iradas”. Então, os tibetanos personificam emoções nesse estado, porque se for pensar, provavelmente nessa hora, o nosso campo emocional vai ficar doido. Tudo o que eu não resolvi, tudo o que eu não treinei emocionalmente, provavelmente vai entrar em pane naquela hora. Então é lindo, é muito misterioso, mas tem algo que ressoa com muitas pessoas, essa jornada. E tem outra versão dessa jornada contada pra pessoa que faleceu. É um guia para a pessoa.

CO - É nesse bardo, entre o nascer e o morrer, o período que nós temos uma consciência e um corpo, que temos mais possibilidades de desenvolver consciência para fazer essa passagem de uma forma mais tranquila? 

SLM - Exatamente. Você falou tudo: é cultivar consciência. Por exemplo, como eu cultivo consciência, agora que eu estou vivo? Uma boa pergunta para cultivar consciência: como a minha família lidou com a perda de pessoas queridas? Essa é uma pergunta muito boa. Começa com a família. Como foi o clima quando meu avô faleceu, ou o vizinho querido, o melhor amigo do meu pai, como foi o clima? Esse é o início. Daí tem perguntas de consciência de como eu lido com dor, por exemplo. Dores físicas. E será que eu busco, nas minhas meditações ou nos cursos que eu realizo, um escape da dor?  Ou será que tem um caminho no meio, onde eu posso não aguentar a dor, mas ser maior do que ela, sem negar a existência dela, mas desenvolver uma consciência de que, se eu me expor para isso, sem negar, ela não vai me engolir. Esse é o caminho do meio. É sentir o medo e seguir adiante. A meditação no Retiro Urbano, por exemplo, é uma aprendizagem de consciência. Mas é [passo] de tartaruga. É lento. As lebres sofrem no bardo, esse eu não tenho dúvida. 

CO - É melhor ser tartaruga...

SLM - Yeah, e começa agora porque quando a gente fala de prática não é ensaio. É prática no sentido de começar agora a cultivar as suas habilidades para aquele momento. E para outros momentos que surgem. Você falou a chave: é pela consciência porque provavelmente a gente já tem muita matéria-prima acontecendo. Reações, na forma de resistências, na hora de uma mudança. E reconhecer o instinto, e ter consciência do instinto, é chave para progredir. Se pular essa parte, vai ser duro. 

CO - Vai ser mais difícil.

SLM - Esse é o desafio do caminho espiritual: lidar com instabilidade e reconhecer o automático [em nós]. E ter uma mentalidade que é slow [devagar], de uma aprendizagem que começa com aquilo que a gente não quer. E aos poucos descobrindo o que é que sustenta esse instinto. E é algo escondido, assim como o Buda descobriu.

CO - Como você vê o corpo nesse processo? Como a consciência corporal nos ajuda nesse processo?

SLM - A consciência corporal ajuda em dois pontos: o primeiro é que na consciência corporal você vai adquirindo a capacidade de lidar com as sensações que já estão aqui, sejam quais forem. E, aos poucos, aprende uma maneira gentil de receber o que está aqui. E o segundo ponto - e esse talvez seja o mais importante para a morte - é reconhecer o outro, que tem outros corpos. Por exemplo você, Carla, é outra pessoa. A gente tem algo em comum só que me faz muito bem quando eu amplio as minhas fronteiras para incluir o mistério que é Carla. E lembrar que a vida não gira em volta desse minha vivência. E requer esforço para eu expandir e aprender a ser resiliente, diplomático, ter adaptabilidade, ter empatia e compaixão, ter paciência, né. Saber como não agir. E sabedoria. Então todas essas características surgem não de um mundinho da consciência corporal, eu com a minha prática, mas surgem de uma vida que é rica de saber que não é sobre eu.

CO - São muitas habilidades para serem treinadas. Não que eu não exista, mas é um estar aqui de uma outra forma, consciente e integrada com tudo.

SLM - Exatamente. O fato de que você está me escutando e entendendo o que eu estou falando é saudável. Fortalece o senso de que “yeah, eu sei o que eu estou falando”. E isso é saudável para a minha história, a base da minha saúde emocional. E quando eu escuto você e você reconhece, você sente “ele me entende” e isso também alimenta um senso saudável dentro da Carla. Isso é a base. A questão é quando a nossa identidade, a nossa história saudável se torna fixa. Daí o negócio começa a encrencar.

CO - Tem que ter fluidez.

SLM - Eu acho que tirar o tapete por baixo dessas histórias fixas, assim que a gente adquire uma história, faz bem. E estamos numa época agora que a identidade está de volta.Os filósofos estão falando sobre isso de novo, as tradições espirituais têm um papel muito importante nisso, mas você falou de novo uma pura verdade: não é uma questão de anular o ego, a ideia é cuidar da nossa história para que aquilo que dá vida dentro da gente possa transbordar. Acho que o estado de não apego é um estado de abundância. Não é de zero, vazio. É que a gente viveu e a passagem ao final é suave porque estamos preenchidos. 

CO - Que lindo, Stephen, muito bonito. O nosso tempo está acabando e se você quiser encerrar com alguma mensagem, fica muito à vontade. 

SLM -  Yeah. Eu quero encerrar com alguma coisa. Eu tô um pouco preocupado com essa mensagem sobre a morte, é tipo “não dá para evitar a morte”. Tipo fria. Porque é uma verdade, não dá para evitar a morte. E o Buda, a gente ouviu, ele falou: “daqui a pouco vai ser jogado no chão etc”. Mas também o que ele falou foi: “Todos treinam diante da punição. Todos temem a morte. Já a vida é querida por todos”. Então, compaixão junto com a verdade é essencial. Se a gente não tem compaixão com esse assunto, não vai ter “escuta”, aquele linda ressonância respeitosa. Porque quando a gente perde alguém querida é muito muito, muito difícil, a gente sabe disso. Então a mensagem, por exemplo, da impermanência, traz sim, uma verdade. Mas ela também lembra que quando alguém tá sofrendo com isso, não é de se dizer pra pessoa “olha, não tem como evitar a morte, sabe”. É de ressoar, de vibrar com a pessoa, de dar um abraço, talvez até virtual. E até talvez dizer “é muito, muito difícil, eu te entendo”. É muito mais importante essa ressonância de entrar na dificuldade e conhecer, “eu sei o que está acontecendo”, do que simplesmente falar a verdade. É muito mais benéfico. Esse eu acho que é a mensagem porque tem muitas pessoas, nossa, eu nunca lembro de abrir o jornal e ver tantas pessoas queridas indo embora. E uma pessoa que morre, é um desastre. Uma pessoa é uma perda grande.



Para assistir à conversa pelo Instagram, aqui está o link:

https://www.instagram.com/tv/CDKci-pHSNB/?utm_source=ig_web_copy_link

 





segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Entrevistei Xênia Bier em janeiro de 2013



"Olha a sua amiga aí", li numa mensagem de Whatsapp da Zappa (a jornalista Alecsandra Zapparoli) às 14h54" de hoje (segunda-feira, 24/08/2020). O link de notícias anunciava: "Morre Xênia Bier, a primeira feminista da TV brasileira". Que tristeza. Murchei igual flor sem água.

A entrevista a seguir (que fiz com ela) foi publicada na revista AnaMaria em janeiro de 2013. Eu era redatora-chefe da publicação, e Xênia colunista.


“A mulher está promíscua

 

Aos 76 anos, Xênia Bier continua firme no posto de apresentadora mais polêmica da televisão brasileira. Só topou dar essa entrevista se fosse sem fotos. “Quero que o público fique com a imagem de quando deixei a televisão, não a atual”, explicou. Uma pena, leitora. Xênia Bier captou meu olhar no hall do prédio onde ela mora como se eu fosse uma câmera. Só desgrudei os olhos dela na hora de ir embora. Lépida e faceira, ela continua a mesma mulher cheia de vigor – e magérrima – que víamos na tevê. De cabelo curto batendo no pescoço com charme e vestido longo até os pés, ela recebeu a revista AnaMaria na sala de seu apartamento gostoso e bem ventilado, em São Paulo. Com tudo impecavelmente no lugar. Entrevistá-la é uma aventura mental, a gente sempre tem a impressão de saber menos, muuuito menos que ela. A cada frase dita, Xênia nos dá a impressão de que nada escapa de seu radar. Braba, bem humorada, ácida, rápida, veloz, assim pensa e fala Xênia Bier. Há 20 anos for a da televisão, mãe adotiva e avó da Marcela, menina meiga de 10 anos, na entrevista a seguir, ela dá sua opinião sobre o mundo atual, educação de filhos, amor, sexo, homens e nós, mulheres.

 

Por Lidice-Bá

 

P – O mundo está em decadência?

R – Eu acho que o mundo está em mutação. E sempre que se muda, decai. Você sente a decadência do mundo pela decadência da mulher. É histórico. Grécia, Roma, Egito… Quando a mulher decai… Ela traz a fotografia da vida na barriga, né. Ela não pode ser promíscua. O homem pode.

 

P – Qual a sua maior crítica ao universo feminino?

R – A promiscuidade. A mulher está promíscua. Em todos os sentidos, não é só sexual. Essa tá grave, eu acho. Não é puritanismo, hein! É o contrário, é respeitar a mulher, é valorizar a mulher. O homem pode ir ali na esquina, dar uma trepadinha, lavar, e acabou. Porque pra ele aquilo realmente é uma trepadinha. Pra mulher não. Ela vai ficando com o rosto marcado. Ela vai sofrendo, ela se sente violentada.

 

P – Qual o grande erro da mulher atual?

R – Ela foi copiar o homem no que ele tem de pior, que é a sexualidade. Desde o movimento feminista que a mulher acha que ser independente é ir pra cama com quem você quiser. Pela-mor-de-deus! Olha o coitado do homem aí, ele tá perdido desde séculos e séculos amém. O homem não sabe o que é amor! A emancipação da mulher era pra ser exatamente essa: ensinar o homem a amar. Assim, ele se emancipava e a mulher também!

 

P – Os homens não sabem amar?

R – Os homens – e as mulheres – hoje se apaixonam. Amor é outro departamento. Paixão é doença. Amor é saúde. Como se diz, o amor não tem idade. É verdade, mas vocês não estão amando, vocês estão apaixonados. Então tem idade, sim. E você é velha pra ele. Acho que essa questão sexual é muito mal resolvida na humanidade. Hoje temos na cabeça que “ai, que horror, pedofilia”, mas isso sempre existiu. A humanidade evoluiu tecnologicamente mas emocionalmente ela continua muito doente.

 

P – A mulher está promíscua em que outro sentido?

R – Como mãe. As mães abandonaram essa coisa fantástica do educar para o futuro. Elas delegaram o poder, terceirizaram para avós, professoras… Tudo ela terceiriza e isso pra mim é promiscuidade. Mas a promiscuidade mais grave ainda é a do sexo. Porque como mulher, ela tem que se colocar como a semeadora do futuro. Porque ela é mãe!

 

P – O que muda quando a mulher vira mãe?

R – Ser mãe é ser sábia. Dentro de uma casa, a mulher é advogada, psicóloga, engenheira, médica, juíza, economista, ou seja, ela é uma sábia! E não importa que fique sozinha na velhice, se cumpriu a missão.

 

P – Pra você, a mulher está promíscua no sentido sexual e maternal. Tem mais algum?

R – Tem a promiscuidade de querer imitar o homem profissionalmente. Fica promíscuo porque ela vai jogar o mesmo jogo do homem e o jogo dele sempre é…

 

P – Pesado para a mulher?

R – Exatamente.

 

P – Dá um exemplo.

R – Não convivo muito com executivas mas tem um ótimo exemplo: a nossa presidenta. Ela é um homem. Eu não tô dizendo lésbica, hein, que fique bem entendido. Mas ela é um homem, ela anda como um sargento. Mas eu entendo essa mulher. Pra sobreviver lá dentro, ela teve que fazer isso. Eu percebi isso muito rapidamente porque quando comecei na televisão era um mundo só de homens, não tinha uma produtora, imagina! Só homens. Então eu fui seguindo o caminho deles, o [autor, ator, diretor e radialista carioca, pioneiro na televisão brasileira] Silveira Sampaio foi meu mito. Eu comecei a aprender a apresentar com ele. Que era muito gente boa mas eu era muito brava, ninguém brincava comigo [baixa o olhar para os pés, que batem no ar]. Não… Não dava pra brincar naquela época. Mas aí eu pergunto numa entrevista com o Decio Pignatari, ele falou isso, como as mulheres só tinham modelo de sucesso masculino, a mulher que queria vencer copiava o modelo masculino, os gestos, e tudo. E eu me vi naquilo, daí falei “ah, isso eu não quero pra mim”. Então comecei a mudar.

 

P – E foi possível?

R – Eu acho que foi, eu virei brava, uma mulher brava. Pra poder sobreviver. Eu tenho a fama… Você fala a meu respeito no meio eles dizem, elogiam a minha honestidade, a minha dignidade, mas dizem “ela tem um gênio do diabo, não dá pra conviver com ela”. Não é gênero, é braveza. Mas se não fosse assim eu não sobreviveria.

 

P – A braveza foi uma defesa?

R – Sim, senhora. Eu era muito bonita. Imagina se eles iam deixar passar em brancas nuvens se eu não fosse brava? Homem morre de medo de uma coisa: escândalo. E eu não tinha o mínimo medo disso.

 

P – As pessoas ainda têm medo de você?

R – Mas eu sou muito esquisita mesmo [ela ri]. Eu sou uma incógnita. Eu tenho dignidade e não tenho o rabo preso. Eu sempre expus tudo no ar: pá pá pá pá [faz gesto de karatê com mão].

 

P – Tem várias gravações antigas suas no Youtube.

R – A primeira vez que eu vi, porque minha neta me mostrou, eu sentei e fui me encolhendo… Há 20 anos eu não estou mais no vídeo e me perguntei: “como é que eu falava isso no ar? Pai de misericórdia, eles têm razão! Não pode soltar essa doida”. Minha neta falou “tem mais”. E eu não dormi à noite. Fiquei assustada mas eu achei que eu era uma puta profissional. Eu falei “até hoje ninguém fez isso”. É porque eu não tenho o rabo preso.

 

P – Você está fora da tevê mas escreve sua coluna nesta revista e é lida por 1 milhão de pessoas por semana, em media. Você não tem medo de dizer o que pensa?

R – Eu tenho medo. Mas eu acho que o que tem de ser dito, deve ser dito. Tem que dizer? Eu digo.

 

P – As leitoras admiraram muito sua coluna sobre a morte da Hebe, no ano passado.

R – Fico feliz que tenham gostado, mas a coluna sobre o Silvio Santos também foi bonita, né? E eu não pus que eu fui noiva dele porque eu não quis.

 

P – O quê??

R – Eu fui noiva dele.

 

P – Você foi noiva do Silvio Santos?

R – Eu fui noiva do Silvio. Quando ele era muito pobre. Aquela coluna que eu falo da meia vermelha [de Silvio Santos] é quando a gente saía.

 

P – Você o amava?

R – Eu era um pouco encantada pelo locutor. Você imagina, ele era lo-cu-tor [fala bem pausado e pomposo]. Aí um dia marquei encontro com ele no Cine Metro, que era chiquérrimo, na época, e eu estava do outro lado da rua e ele na porta. Eu vi ele de longe, ruivo, a calça curta, a meia vermelha, o sapato… Eu falei “ah, não, não dá”. Nãããooo, não dá. Falei que não dava. Terminei. Ele falou: “um dia eu vou ficar rico e vou te comprar”. Dei risada, falei “vai ficar rico como? Nós dois pobres, você mora nessa pensão desgraçada na rua do puteiro, agora vai ficar rico como? Va, va...”. Passaram-se anos e anos e anos, eu saí da TV Bandeirantes e ele mandou me chamar pra me contratar. Aí o Arlindo Silva veio me buscar aqui. Eu falei: “vou”. Eu tenho que trabalhar, né? E o Arlindo disse que eu tinha que assinar com ele, Silvio. Então tá bom. Eu tinha esquecido. Quando assinei o contrato, ele falou: “Eu disse que lhe comprava”. Ele não tinha esquecido. Cê sabe que me deu um choque tão grande que me deu artrose nos joelhos.

 

P – Na hora?

R – Não, demorou um pouco. Aí o Ademarzinho Dutra veio e falou: “Ai, Xênia, ele pede todos os dias os tapes do programa e fica assistindo na sala”.

 

P – O Silvio gostava de você?

R – Gostava. Mas depois que eu cresci na televisão, eu não sou o tipo de mulher que encanta. Ele quer mulher…

 

P – ... submissa?

R – No fundo ele tem admiração. Mas não pra ser mulher dele. E ele realmente cresceu, ficou milionário. E é um homem dificílimo, né. À maneira dele, é feliz. Cê já viu algum sagitariano que se preocupa com os outros? Não. E ele é casado com ele mesmoQuando o Silvio Santos morrer, a televisão para. Ninguém vai fazer igual.

 

P – Como você vê a televisão brasileira hoje?

R – Eu tô vendo muito mal, eu não tenho o que assistir. Eu assisto às novelas por absoluta falta de opção. E as novelas da Globo são bem feitas, justiça seja feita. Têm produção, direção, gente que entende do riscado. De vez em quando fazem umas cagadas homéricas como essa novela das nove agora [refere-se à Salve Jorge, de Gloria Perez], mas acontece. O que que eu vou assistir?

 

P – Nada se salva?

R – Tenho o maior respeito pelo Silvio Santos mas a minha idade não me permite mais essa paciência com o auditório. Fausto Silva, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, é um chato de galocha. A TV Cultura é chatíssima. O Roda Viva às vezes me dá até nausea de tão chato, convidam uns jornalistas rançosos… Pode-se fazer uma coisa inteligente e de nível. Jô Soares não fez? Chico Anysio não fez? Todo mundo parava pra assistir! A TV Pirata era formidável, e o próprio Sai de Baixo era engraçado. Já era um humor mais escrachado, mas isso cabe também. Agora eu não sei. Tem umas celebridades… O Marcos Mion, meu Deus, o que que ele é? Rafinha Bastos. Ele ia muito bem lá com o Marcelo Tas, que é antipatissíssimo, diga-se de passagem, mas é inteligente, sabe o que tá fazendo. O que sobra? As tais celebridades, eu não sei o que que é essa gente. Não sei.

 

P – E qual a consequência disso?

R – Pra juventude, a internet interessa muito mais. Minha neta gosta de novela e eu não proíbo porque tudo que é proibido é melhor. Ela senta comigo e assiste. Com 10 anos, ela é o ibope pra mim. Quando começou essa novela das nove, ela viu uns três capítulos e foi pro computador. Eu falei: “a novela não vai pegar”. E não tá pegando. Como ela, todos os outros foram. Em Avenida Brasil, todos ficaram. A Marcela torcia, “Carminha maldita”, “quero matar essa mulher”. Agora ela nem toma conhecimento.

 

P – Na tevê recente, Avenida Brasil foi a melhor coisa?

R – Infelizmente sim. É triste, porque o público está muito apático. O politicamente correto amassou as pessoas. Ai, não pode falar isso porque é feio. Há todo um clima negativo, essa obrigatoriedade da mídia de mostrar só o que é ruim, é o crime, o crime… Não dá pra viver, né.

 

P – Por que a mulher comete esse erro, de disputar com o homem a força sexual, se ela é tão inteligente?

R – Não sei, porque ela sempre quer ser moderna. É pelo medo de ficar para trás. É triste isso.


P – Toda mulher deve ser mãe?

R – Eu acho que não, tem mulher que não tem instinto materno. Essa mulher não deve ser mãe porque vai ser infeliz ela e a criança. Esse negócio de que toda mulher tem instinto materno é conversa. Por exemplo, eu nunca tive vocação pra parir. Nunca fui estéril, poderia ter os filhos que eu quisesse, mas eu me sentiria horrorizada com um ser humano dentro da minha barriga, o que vocês querem que eu faça? Nasci pra ser mãe mas não nasci pra gestar.

 

P – Sua filha é adotada.

R – É. Eu não teria condições de gestar.

 

P – Por que a sociedade pressiona tanto para a mulher ser mãe?

R – Isso é tão milenar que já vem na genética, tem que ser mãe, tem que ser mãe. Acho que é pra deixar a mulher no seu devido lugar, né. Se a mulher é a construtora do futuro, porque ela educa dentro de casa, então vamos condicionar. E a mulher compra essa ideia. Mas isso também é social, e, às vezes, ela pari mal, é uma péssima mãe!

 

P – E qual a consequência disso?

R – Péssimos cidadãos para o futuro.

 

P – Qual o recado para a sociedade que pressiona e para a mulher que vira mãe por obrigação?

R – Essa mulher tem que ter coragem, caramba. O século XXI favorece tudo isso. Ainda tem muita coisa a ser vista, revista, mas nesse século você tem que dizer ao parceiro, quando está namorando ou vai casar: “eu não quero filhos”.

 

P – Mas essa mulher não é vista com bons olhos.

R – Especialmente pela família do parceiro. Porque em geral, a família do homem precisa provar que ele é um garanhão. Se ele não tem filhos, vão dizer: “será que ele não tá dando conta do recado…”. É pressão pra cima dele. Se o homem é estéril a sociedade já mistura com impotência! Os homens não fazem vasectomia porque têm medo de perder a virilidade!

 

P – Com os diferentes papéis a exercer na vida moderna, as mulheres estão mais culpadas?

R – Antes dessa correria também elas viviam o império da culpa. Era um outro tipo mas também era culpa. Ela tinha que comer bem, ter a casa sempre bem arrumada, ela nunca achava que cuidava do marido o quanto ele merecia, era sempre o senhor poderoso num pedestal, tinha uma frase muito, não sei se usa hoje, mas era dita ao filho “você vai ver quando seu pai chegar”. Isso é horrível, quer dizer, ela jogava tudo pra cima do pai, só ele podia dar jeito, até numa criança. Mas ela também tinha culpa.

 

P – Algum dia a mulher vai se libertar das culpas?

R – Não sei. O dia em que for eliminada essa visão, é possível.

 

P – Na educação dos filhos, onde a mulher precisa mexer para criar um mundo mais feliz?

R – Xiii… É difícil. O homem faz sempre o papel de bonzinho, já reparou? E deixa o malzinho pra mamãe. Todo filho diz “meu pai é ótimo, minha mãe é uma chata”. Por quê? Porque ela é que tem que educar, e ele desautoriza ela. A mãe dá uma prensa aqui, daí eles vão pro pai e ele fala: “Não, a mãe tá com TPM, logo passa”. E acaba ali. Então, em primeiro lugar: parceria na educação. Mesmo que você veja que teu marido está chamando atenção de um jeito errado, deixa. Depois você conversa com ele. Não na frente da criança. A mesma coisa o marido. Eu não gosto de educação por medo ou hipocrisia. Agora há pouco, antes de você chegar, eu tive um sarapapá com a Marcela. Eu grito que nem uma lôca. Ponho pra fora tudo. E ela grita comigo também. Eu passo a mão na colher de pau e falo “eu vou te dar uma colher de pau na bunda”. Dez minutos depois, quem ouviu, diz: “são tudo louco”. Mas eu pus tudo o que estava me incomodando pra fora, não sou louca de ficar guardando, engolindo e com raiva da criança. E nem ela com raiva da vó. Ela solta: “chata, que me enche o saco, poxa” [ela ri].

 

P – Mas isso é normal.

R – É, mas não pode, porque é feio gritar… Daí ficam cheios de ressentimento. E é uma menina saudável, alegre, brincalhona, pura. Com quem se conversa tudo.

 

P – Qual o segredo dessa boa educação, Xênia?

R – Outro dia a gente estava assistindo Gabriela e o Humberto Martins foi descendo, beijando a Gabriela pra cá, pra lá, ela falou: Vovó, ele vai beijar a periquita dela?”. Eu falei: “Vai”. Ela falou: “Mas é nojento”. Eu falei: “Você que sabe. Ela gosta, você acha nojento, cada um acha o que quiser, pronto”. E te digo: ela não tem um pingo de malícia. Outro dia ela me pegou perguntando o que era cafetina. Aí falei: “É uma mulher que recebe metade do que as moças recebem quando se prostituem”. E ela: “Putaquepariu, vó, que horror, tem que matar essa desgraçada” [ela ri].

 

P – Hoje a mulher reclama que não tem homem e, quando tem, eles não querem ajudar em casa.

R – Não ajudam porque não sabem. Não são educados pra isso.

 

P – Por que a mulher educa de forma diferente e põe a menina pra fazer tarefas domésticas e o menino não?

R – Ela faz isso sempre com medo de que o filho seja gay. Já vem do marido, que diz: “Menino vai fazer serviço de casa? Não, assim vai virar gay”. Daí começa a gozação.

 

P – Como formar os homens de amanhã, então?

R – Se o menino vê o pai na cozinha ajudando a mãe, varrendo a casa, limpando um vidro, ele vai copiar o pai. Mas ele vê? Não. Ele vê o pai lendo jornal, futebol…

 

P – A maior reclamação da mulher é a falta de tempo. Como resolver isso?

R – Não sei, acho que a gente trabalha muito agora. E já dizia Jesus, a seu tempo: “Não se serve a dois amos”. Então ou você trabalha ou você tem filhos.

 

P – É preciso haver uma opção?

R – Sim. Eu prefiro não ter computador novo, mas ter um filho feliz. Porque normalmente se trabalha não é pra ajudar na despesa, é pra comprar futilidade, coisas que enferrujam, que apodrecem. O ser humano não enferruja, não apodrece e morre porque é mortal. É o mercado.

 

P – É muito trabalho que resulta em consumismo fútil?

R – As pessoas não percebem que nós estamos numa puta ditadura, que é a ditadura do mercado? Ninguém é livre nesta porra, meu Deus! Você tem que ser muito magro, você tem que ser muito moço, você tem que trabalhar muito pra comprar muito! Não conte tristeza, peloamordedeus, você é pesada e você tem que ser leve… Porra, como é que eu posso ser leve se eu abro o jornal e tem oito motocicletas palestinas arrastando um palestino morto porque ele traiu a Palestina passando informação pros judeus? Eu posso ser feliz com esse mundo? Esse mundo evoluiu? Não evoluiu porra nenhuma! Evoluiu cientificamente, tecnologicamente, mas o ser humano está voltando pras cavernas.

 

P – Vivemos uma imaturidade social?

R – Essa sua geração, que está agora com 35, 45 anos, foi criada com os pais se colocando à frente. Eles não amadurecem nunca. Temos essa evolução fantástica, a internet – que é um perigo – mas em contrapartida, temos a cabeça do ser humano que é das cavernas. Os crimes continuam, as guerras continuam, os estupros, a violência… Qual é a evolução? Evolução pra mim é de dentro pra fora do homem. O que adianta viver mais dez anos porque a medicina avançou? Eu prefiro morrer antes e a humanidade ser melhor!

 

P –  Para a humanidade melhorar eu acho que a mulher precisa ser mais amiga da mulher. Você acha que um dia a mulher vai conseguir ser amiga da mulher?

R – Não. Eu não tenho esse otimismo. Nós somos extremamente competitivas, não parece mas somos, né. Não com os homens, nós somos competitivas entre nós. Aí reside a nossa fraqueza, porque os homens são amigos uns dos outros. Eles não levam a sério, eles dão tapas nas costas, são cúmplices, encobrem as coisas uns dos outros… A inveja do homem é menos perigosa que a inveja da mulher. Pra armar uma arapuca ele é menos inteligente do que ela. Mulheres são terríveis, eu tenho medo, MUITO medo… Inclusive a mulher é inimiga da mulher por pura insegurança. A mulher é tão insegura do seu valor que ela precisa sempre estar derrubando alguém pra sentir que está por cima.

 

P – E qual o valor da mulher?

R – É o valor de um ser humano. É o valor de quem traz a fotografia da vida na barriga. E deixe de sujar o canal do nascimento, a mulher não pode ser promíscua. O canal do nascimento tem que ser limpo. Isso vai colocar mais culpa ainda pra cima dela.

 

P – Como explicar isso pras mais jovens, que vão achar esse discurso puritano?

R – Não é puritano não. Você pode ter 50 homens e continuar limpa. No decorrer da tua vida, dormiu com 50 homens e continua limpa. Você continua limpa se você teve sentimento por aquele homem. Não porque você encontrou numa noite e foi pra cama com ele. Se você encontrou numa noite e foi pra cama com ele você tá suja. A Mulher não nasceu pra isso. Nãaao. E ela não tem a necessidade sexual que tem o homem. Desafio qualquer uma. DE-SA-FIO. A necessidade sexual do homem é toda diferente, tanto que ele é pra fora. A mulher precisa parar de competir com o homem, principalmente nesse aspecto. O orgasmo masculino é totalmente diferente do feminino!” Por isso pra eles, ó [faz gesto de tanto faz], é uma força que sai, e acabou!

 

P – A mulher precisa mais é de segurança afetiva mesmo?

R – É uma necessidade, sim. É da mulher.

 

P – O homem não precisa aprender um pouco mais sobre a mulher?

R – Mas eles não querem saber! Por quê? Voltamos ao sexo. Pra eles, mulher é aquela que vai dar esse imenso prazer pra eles. Pronto. Você dá comida pra ele, você dá sexo, ele tá realizado. Ah, não esquecer da cervejinha! E do futebol. Homem cresce mentalmente só até 12 anos, depois é só corpo.

 

P – Até quando a mulher vai usar o corpo como arma de sedução?

R – Pra sempre. Sempre foi e sempre será. Desde o Egito, de Roma, desde a putaquipariu, Eva deve ter usado o corpo dela pra pegar o Adão. E vai usar sempre.

 

P – E qual o caminho que as mulheres devem seguir de agora em diante conscientes disso tudo?

R – O trabalho eu acho fundamental. Para um grupo de mulher que pode optar por escolher o trabalho, eu acho que ele é fundamental. A mulher casada que tem filhos precisa pensar muito antes de optar. Ela tem que pensar: “O que eu quero? Trabalhar e terceirizar meus filhos vale a pena?”. Porque essa história de “ah, depois eles casam e depois me deixam”. Não, mas quando eles casarem e te deixarem eles já estão tudo estragado. Ontem morreu uma criancinha de 3 anos numa escolinha, numa piscina, né. Estava na escolinha, período integral. Então pra que ter filho? Deixa a criança na escola às 8h da manhã, vai buscar às 6 da tarde, você não tem filho! Amor é fruto de convivência! Teu filho tá dentro do teu útero, você vai gostar mais dele quando ele sair! Ele é um desconhecido, você não conhece nem a fisionomia! Amor é fruto de trocar fralda, de fazer mamadeira, é, sim, senhora, amor é trabalho! Que, pensa que amor vem assim, fácil? Não, não vem, não. Não vem. Então uma criança que fica confusa, a empregada durante o dia trata, cuida do jeito que ela pode, do jeito que ela sabe, de noite vem “ah, essa é a mamãe”, que confusão na cabeça dessa criança! Então veja: é melhor você ter arroz, feijão, bife e batata frita e não ter aquela televisão magrinha, que eu chamo de televisão magrinha [refere-se às TVs sem tubo], não ter a roupa de marca, tudo isso é pra mostrar pros outros, é pra mostrar pros outros que você tem. E educar teu filho bem porque isso é você que faz, porque ninguém, ninguém substitui a mãe. Algumas mães são uma porcaria, mas a maioria é voltada pro filho. E o terceiro grupo é o dos ricos, e os ricos que se virem. Não sei, não conheço a vida deles, eles que se virem.


FIM


Quero deixar registradas aqui duas frases da Xênia pra mim, em conversas telefônicas (sempre às sextas-feiras, lá na revista) que nunca esquecerei:

"Não fale comigo no diminutivo porque eu sou velha, não sou retardada"


"Não faça acordos por medo de solidão, Lidice. Nenhum acordo. Se quiser, case-se, mas por vontade de casar, e não por medo de ficar tia solteira. Se quiser, tenha filhos porque deseja ser mãe, e não por medo de envelhecer sozinha"