sábado, 29 de agosto de 2020

A morte na visão budista

Eu gostei tanto da conversa que a fisioterapeuta Carla Oda teve com o monge budista irlandês Stephen via Instagram (em 27/07/2020) que a transcrevi, editei e acrescentei um texto de abertura. O resultado está abaixo.




Mistério no ar



A morte na visão budista



Um chá aqueceu o frio de 14° Celsius em São Paulo, na noite de 27 de julho de 2020, quando um papo profundo sobre o maior mistério da vida foi conduzido com leveza. A convite da fisioterapeuta Carla Oda, o físico irlandês Stephen Little Manjupriya, monge ordenado pelo budismo, falou com mansidão sobre a morte. A conversa, iniciada às 19 horas, ao vivo pelo Instagram, durou 55 minutos.

Formado no método Breathworks, na Inglaterra, e por Michael Chaskalson, especialista em Mindfulness, Stephen é radicado no Brasil há 18 anos - onde faz trabalhos de pesquisa e consultoria na área. Palestrante experiente no ensino da prática de Mindfulness, é instrutor de programas e workshops focados em saúde, bem-estar e inteligência emocional em liderança. O curso de Mindfulness que ele desenvolveu (para instituições, empresas e ONGs) passou por uma pesquisa rigorosa e os resultados foram publicados na revista científica suíça Frontiers, em 2018. Em seu espaço, Stephen realiza ainda o curso de redução de estresse baseado em Mindfulness, além de ser professor da School of Life e trabalhar com os pacientes com HIV do Hospital Emílio Ribas.

Em março deste ano, assim que viu a pandemia chegar ao país, ele criou o Retiro Urbano, “um espaço de conexão consigo mesmo e com o outro durante o isolamento”, ele define. São duas sessões diárias de meia hora cada uma (via Facebook ou Instagram) com meditação guiada ao vivo, intercalada por histórias de vida, ensino de Mindfulness, prática de consciência gentil e, mais recentemente, até o “fazer nada”. É quando Stephen mantém o olhar fixo na câmera e espera o tempo passar junto com o público. “Fazer nada por uns minutos é uma mini-morte”, ele costuma dizer em seu português fluente.

Na conversa a seguir, Stephen contou um pouco sobre as origens do budismo e sua visão de impermanência, esclareceu que a tradição cita outras pandemias ocorridas no passado e deixou o convite para quem quiser: “Sim, é possível se preparar para a morte”.


Carla Oda - Boa-noite. Que bom te ter aqui!

Stephen Little Manjupriya - É uma honra!

CO - Eu fiquei muito feliz que você aceitou falar sobre a morte na visão do budismo. Estamos vivendo um período em que ela está muito presente na nossa vida com essa pandemia. E a morte ainda é um tabu - principalmente no Ocidente. Então eu queria ouvir você a respeito do budismo para começar. O que é o budismo?

SLM - O budismo começou com o Sidarta Gautama, que era um rapaz casado, com filho, que começou a perceber uma inquietação no ser humano. Ele ficou bem transtornado com uma percepção do impacto não saudável no povo dele, de uma inquietação profunda. Ele viu, em guerras, irmãos queridos atacando outros para matar. O que acendeu dentro dele, no transtorno, foi uma questão. Mais tarde como Buda, ele falou que a busca dele começou na juventude quando ele percebeu, dentro dele, embaixo da inquietação, um espinho dentro de uma ferida. Daí ele foi buscando um caminho nas florestas, abandonando a vida doméstica pra chegar nesse espinho, nessa ferida. Então é uma história de uma cura interna porque mais tarde ele descobriu que o espinho dentro da ferida é a nossa dualidade. Vivemos, segundo o Buda, na dualidade. Vida e morte são uma dualidade. O curioso sobre o budismo é que o Sidarta buscou a fonte desse sofrimento, dessa inquietação, e se curou. Essa é a iluminação. E ele passou 40 anos transmitindo um caminho para os outros. Então o budismo é uma transmissão, é uma comunicação entre uma pessoa e outra. Essa característica é super importante na nossa tradição: é a transmissão de um caminho passo a passo, com passos regulares, para o ser humano, assim como Sidarta, chegar no espinho, na ferida, e entrar num processo profundo de cura. Outra coisa que a gente pode ver é que na essência do insight do Buda, não é a dor da perda ou da morte ou da mudança que faz o estrago, que faz o sofrimento. É como eu lido com a perda, como eu lido com a impermanência ou a instabilidade, que faz eu sofrer. Então a mente, em budismo, é central. E é por isso que budismo é muito associado com meditação que, praticada diariamente, é uma chance de pôr as mãos na massa, na fonte do problema. Nesse contexto, o resto da nossa conversa fica mais suave porque tudo vem dessa percepção de um homem, 2.500 anos atrás, de uma inquietação humana diante das mudanças. E ao invés de falar para os outros durante 40 anos “ó, fique calmo”, ele não fez isso. Porque ele sabia que isso não funciona. Ele mostrou o caminho para descobrir as condições subjacentes que apoiam aquela inquietação [diante das mudanças]. E é um caminho para chegar lá, ao invés de uma técnica rasa, tipo “fique quieto aí”.

CO - Seria muito fácil.

SLM - Yeah, tipo “se vira”. Imagine uma pessoa que está perdendo uma pessoa querida e a mensagem de uma autoridade é: “Ah, eu não consigo evitar mortes, se vira”. É horroroso. É horroroso receber aquilo!

CO - Essa pandemia trouxe a morte de uma forma muito impactante. Muitas famílias estão se despedindo dos seus familiares, a nossa rotina anterior não é mais a mesma, tudo mudou muito e a gente tem vivido essa morte diariamente. Não só a morte física, mas as nossas perdas, né. Como podemos lidar com a morte de uma forma menos impactante do que está sendo com essa pandemia?

SLM - É um assunto sóbrio. E é curioso porque meu pai - que celebra daqui a umas semanas 80 anos na Irlanda - estava falando que duas pessoas da família dele morreram na gripe espanhola. E não foi na primeira onda, foi na segunda onda. Eu não sei o que eles acharam da segunda onda, o que é a segunda onda, porque demorou dois anos para a segunda onda chegar, naquela época. Então com certeza as coisas têm mudado desde 1918, 1920, e agora. As influências são muito mais rápidas por causa da nossa interconectividade. Mas dentro da tradição budista, a gente vai lendo os relatos antigos e vai vendo que havia pandemias na história. No Tibet, por exemplo, eles tinham.

CO - E existe esse passo a passo que você diz, para eu vivenciar a minha morte de uma forma mais tranquila e para eu conseguir lidar com as minhas perdas? Como o budismo vê a morte?

SLM - Bela pergunta. A morte é onde a gente vai ser testado. É onde a gente está sendo testado. Então emerge da infeliz mas real instabilidade da vida. O lado de como me preparar para a minha própria morte, e daí o outro lado, como eu lido com o fato de que tudo o que é querido, vai embora. Inclusive, talvez já foi, e não vai voltar. Esse é a parte salgada da história: já foi e não tem como essa fase (ou essa pessoa, ou experiência) voltar. Nunca vai ser a mesma coisa. Então tem como se preparar. E tem um terceiro tema que é o que acontece na morte. Existe uma literatura antiga, o livro tibetano dos vivos e dos mortos, que é o mais citado na área sobre os relatos das pessoas que supostamente entraram na fase pós morte e voltaram. Enfim, talvez seria bom começar com a sua pergunta: como se preparar para a nossa própria morte. Eu não sei quantas vezes você já pensou que estava com sintomas de Covid desde março.

CO - Eu não achei que eu tivesse com Covid, não.

SLM - Uau. Olha, que bom! É curioso porque a minha mente, umas três ou quatro vezes, começou a fabricar uns sintomas. “Hum, será?”, especialmente no início. Daí eu vi que era pra passar aspirador na casa toda [ri e volta a ficar sério]. Mas a mente é um fator importante nos preparos. Eu não quero deixar uma mensagem leviana porque não tem uma técnica. Estamos falando sobre o preparo para o maior desconhecido que existe. Então toda a literatura que eu li, e os outros psiquiatras, poucos, que recentemente estão olhando para a questão da transição, estão dizendo que as pessoas que têm uma transição mais suave na hora da morte são pessoas que têm treinado algum tipo de não apego. De deixar fluir, de abrir mão de uma fase e se abrir para o desconhecido. Essa parece que é a característica na base da habilidade humana que mais favorece uma suavidade. Só que quando você olha para a tradição budista, essa suavidade, essa capacidade, não é só um treino psicológico, é um treino ético também. Então esse é super importante.

CO - Por quê?

SLM - Porque parece que a pessoa que tem uma consciência ética leve, vai mais suave. E tem senso comum nisso. Eu imagino que a maioria das pessoas aqui vão concordar na hora, tipo a viagem é mais leve, a jornada é mais leve, se a gente consegue arrumar nossas brigas. Inclusive o Buda falou, “há pessoas que sabem que a morte vai chegar, aquelas pessoas arrumam suas brigas”, esse é uma fala muito antiga do Buda. Então a questão de não só escutar os outros, que é fundamental, mas também de perdoar os outros, faz parte dessa suavidade. Esse é o palco. Eu acho que o dado é que, no Ocidente, muitas vezes a gente começa, inconscientemente, e por bons motivos, transformar tudo na área de saúde emocional em algo psicológico. Nas tradições antigas, sim, tem um lado que é mental mas tem um lado que é ético.Eu não tô falando de culpa. Em budismo, né, remoer, algo com senso de culpa, é pesado. E você não vai ter uma jornada suave, se tá remoendo alguma coisa e não resolveu. E culpa é um estado muito muito pesado e sofrido. É um veneno mental, segundo o budismo. É uma inquietação muito sofrida não baseada em muitos fatos. 

CO - Quais as práticas que ajudam?

SLM - Aprender a habilidade de escutar é uma delas. E escutar não é aquele escutar ativa, é escutar sem precisar produzir, não tem uma criação acontecendo. É “eu preciso morrer pra receber essa coisa que essa pessoa está dizendo pra mim. Eu preciso completamente abrir mão dos meus preconceitos, pré-fabricações ou ideias ou expectativas, e deixar algo entrar para entender esse outro ser humano. E entender bem”. Esse é uma mini-morte. E tem oportunidades o dia todo para isso. Então esse é uma das práticas. Outra prática é fazer nada. Ou como aqui no Brasil é chamado, o nadismo. Não é contemplar algo, não é meditar, é ficar inútil. É morrer para o mundo. Para que a gente perceba e renove aquele percepção de que “o mundo não precisa de mim”. Mas quem quer fazer? Wow, a gente tem uma galera nas lives que vem e gostam. Mas confesso que na hora que a gente começou a oferecer muito essa prática de fazer nada, eu não ligo, mas os números caíram. [ri] Outra coisa que ajuda é tomar responsabilidade pelos nossos atos e não se defender tanto. Tem uma outra mini-morte, é tipo, não é culpa, é descobrir qual é minha parte nessa confusão. E uma outra mini-morte ainda é mudar um hábito. Mudar um hábito. Aquele gás que vem quando a gente deixa um hábito que atrapalha pra trás e realmente avança. Na tradição, essas mudanças são chamadas mortes espirituais. E elas favorecem muito, no futuro, o acúmulo da característica que a pessoa precisa para aquela passagem suave. 

CO - Eu escutei uma vez uma frase que eu gostei bastante: “toda escolha tem um luto”. É como se a gente fosse vivendo essas mini-mortes no dia a dia para se preparar para essa morte que vai chegar, a passagem?

SLM - Yeah. Sim. Essa é a grande sabedoria. Eu vivencio isso todo dia quando fecho os meus olhos. Minha mente, estou treinando para ficar com a respiração, mas ela é que nem uma criança que quer ficar no videogame. Então preciso arrastar ele de volta para o “aqui agora”. E daí o luto é: “o que eu quero?”.

CO - E o que acontece na morte? Como é essa experiência de morrer, segundo essas pessoas que morreram e descreveram?

SLM - Recentemente, eu estava lendo Dhammapada, que é o relato mais antigo do Buda - e o mais fiel - e olha, essa frase, que eu já li várias vezes, entrou. Sabe quando finalmente entra? Escuta, é forte o que ele fala. Essa é a palavra antiga do Buda: “Em breve, este corpo, ausente de consciência, se deitará abandonado sobre a terra como um tronco inútil”.

É como se fosse um véu [caindo], eu senti algo que o meu organismo e a minha mente não me deixam perceber durante o dia, a inquietação impede isso. Daí eu senti meu corpo como se fosse uma árvore que vai apodrecer. Já tá apodrecendo, inclusive [ri]. 

CO - Todos nós, né.

SLM - Então, tem um lado que é leve mas tem um lado que é encarar [toca com as duas mãos suas omoplatas]: “Yeah, esse é carne. É carne”. Eu não como carne, mas sei que, se você compra carne, quantos dias, mesmo na geladeira, vai ficar bem? Não é incrível? A consciência deixa essa carne viva o mais que possível, até que não consegue mais sustentar isso. E a gente não vive na geladeira. É muito curioso o que está acontecendo. Então um Covid da vida, infelizmente, perturba tudo isso. A visão do hinduísmo e espiritismo é diferente do que o budismo. A troca da roupa, que é a ideia do hinduísmo e espiritismo sobre a morte, e que uma alma fixa vai continuar, esse não é a visão budista. Existe renascimento, só que o budismo ensina o caminho do meio. É prático mas é um pouco misterioso porque na morte, segundo o Buda, algo que está acontecendo o tempo todo vai entrar numa nova fase. A gente tá renascendo o tempo todo. Eu não vejo que eu sou a mesma pessoa que acordou hoje de manhã. E os elementos que sustentam essa maravilha se desmontam. Então muitas pessoas, quando questionadas com precisão sobre o que é a morte, relatam que têm mais medo da dor que acham que vão sentir. Dependendo do momento, é capaz que vai ter dor.

CO - Mas é um mistério.

SLM - O que acontece na morte depende de muitas condições. O cirurgião cardíaco [americano] Sherwin Nuland, que escreveu sobre isso, falou que pessoas que são atacadas com faca - desculpe, mas acontece - muitas vezes nem sentem dor por causa das endorfinas que o corpo solta naquela hora. Porém, o que a gente pode dizer - e a tradição fala sobre isso - é que a consciência, a mente, muda. Os elementos físicos, o sólido, os líquidos, o ar, o calor no corpo, todos esses somem. Eles ruem porque não conseguem mais manter a forma. E a consciência que ilumina este momento entra numa nova fase, onde até não tem mais um espaço para definir “eu”. Então todos os relatos da vida após morte no mundo, que eu li em estudos, falam que existe uma jornada. Um tipo de processo pós morte. E cada cultura tem imagens específicas que descrevem o que acontece.

CO - Por exemplo.

SLM - Em algumas culturas é um túnel, em outras, é uma luz. Mas tem coisas que são parecidas. Os tibetanos falam - e eu acho que esse é comum em todos - que nesse momento a gente encontra uma luz muito, muito brilhante. E é o momento onde, na jornada, não tem volta. É a morte mesmo. O corpo já foi. E neste momento, o que eles dizem, é que a dualidade da inquietação - que Sidarta viu logo no início -, que era a fonte do problema, se encontra com a não-dualidade, a realidade. Em breve esse corpo vai ser jogado. Já foi jogado. Agora a mente está livre. Em todos os relatos, isso aparece em formas diferentes mas dizendo a mesma coisa. E os relatos pós morte das pessoas que voltaram são relatos de pessoas que chegaram nisso e, por algum motivo, a mente ficou inseguro, o corpo foi salvo - ou alguma coisa - e a mente voltou. Eu não tenho experiência disso. Só que o budismo é poético porque diz que, assim como eu hoje, talvez você, não sou mais a mesma pessoa que quem acordou, no budismo, nessa passagem, quando não tem mais volta [estala os dedos], a mente sem saber como lidar com a não dualidade, se navega naquilo, a nossa própria identidade. E pode amadurecer muito. Então não tem uma ideia de algo fixo que vai reencarnar no budismo. Porque o budismo, o budista, é basicamente o rei de falar: “não tem algo fixo. Mesmo na morte”. Só que, normalmente, o que acontece? No meio daquele desconhecido, da não dualidade, da realidade, a nossa consciência fica, em algum momento, insegura. E tem que se corporificar. Então vai ser atraído por uns elementos, células, e a matéria começa a se materializar de novo, envolta da consciência. Esse é a ideia.

CO - Interessante.

SLM - O Buda gostava de falar sobre isso. Ele falou sobre, por exemplo, uma árvore seca que estava pegando fogo e os galhos, as chamas estão pulando de um galho seco para o outro. E ele perguntava para os discípulos, “olha, aquela chama lá, que está num galho, que está pulando para o outro agora. Aquela nova chama no novo galho é a mesma chama do que a anterior? Ou é totalmente diferente? Ou é nem diferente, nem…”. E ele brincou assim, abrindo a cabeça da pessoa para algo poético, que não dá para descrever de forma científica mas que existe entre os opostos. Então essa poesia do caminho do meio, da vacuidade, e do mistério da mente, para muitos praticantes budistas é a atração primária. Porque basicamente é o som, é o conceito de não apego. É aquilo que traz, no fundo, a paz. E a suavidade que a gente busca, que ajuda a gente a perdoar o outro. Fazer nada, meditar, lidar com vizinhos barulhentos…

CO - Nessa passagem algumas culturas falam das sete semanas, 49 dias. O que acontece nesse período?

SLM - Os tibetanos e o Bardo Thodol - o livro tibetano dos vivos e os mortos que foi escrito por Padmasambhava, no Tibet, e foi perdido, ou escondido, segundo a lenda, e ressurgiu depois -, um livro incrível, descrevem a consciência, a nossa mente, nas várias fases. São seis estados intermediários. Por exemplo, estamos dentro de um estado intermediário, um bardo, é o nome. A gente está entre o nascimento e a morte agora.

CO - A gente está no meio.

SLM - É. Estamos dentro também do bardo entre adormecer ontem e adormecer hoje à noite. Daí, adormecer, o mundo dos sonhos, é um outro bardo, é entre a vigília e a vigília. Os tibetanos falam sobre  estado intermediário depois da morte. E a ideia é que demora 49 dias. Eu não sei se é simbólico, mas o Bardo Thodol traz o ensinamento de como o navegante pode praticar os bardos e também é para uma pessoa querida ler textos para a pessoa recém-falecida, para ajudar a memória da pessoa navegar no mistério. E é lindo, lindo. Posso ler, só uma parte?

CO - Claro, fica à vontade.

SLM - Então, esse é o bardo do momento antes da morte. Eu não sei, eu acho que o português está bom.

CO - Está ótimo.

SLM - Vamos lá. O que é o bardo? O bardo é o estado intermediário, né. [começa a ler] “Agora que o bardo do momento antes da morte surge dentro de mim, eu vou abandonar todo o apego, anseio e todas as percepções contaminadas pelo viés. Devo entrar sem distração no caminho no qual os ensinamentos transmitidos estão claramente compreendidos”. [retorna o olhar para a câmera] Esse é budismo. É muito, muito preciso. É tipo, memória daquilo que tem valor essencial nessas horas de transição. E daí ele continua: “Preciso ejetar a minha própria consciência para a esfera do espaço não nascido. No exato momento em que eu abandonar este corpo composto de carne e osso, eu vou saber que ele não passa de uma ilusão transitória”. É budismo tibetano de primeira. Então daí vai para o encontro com a realidade. E esses são os versos: “Agora que o bardo da realidade surge diante de mim, eu vou abandonar todo o medo e terror, reconhecendo tudo que surge como uma expressão natural da consciência, se manifestando naturalmente por si mesmo, sabendo que os sons, raios, e luzes são meramente fenômenos visuais nascidos desse estado intermediário. Agora que cheguei a esse ponto decisivo, crucial, eu não vou temer estas manifestações naturais, as de idade pacíficas e iradas”. Então, os tibetanos personificam emoções nesse estado, porque se for pensar, provavelmente nessa hora, o nosso campo emocional vai ficar doido. Tudo o que eu não resolvi, tudo o que eu não treinei emocionalmente, provavelmente vai entrar em pane naquela hora. Então é lindo, é muito misterioso, mas tem algo que ressoa com muitas pessoas, essa jornada. E tem outra versão dessa jornada contada pra pessoa que faleceu. É um guia para a pessoa.

CO - É nesse bardo, entre o nascer e o morrer, o período que nós temos uma consciência e um corpo, que temos mais possibilidades de desenvolver consciência para fazer essa passagem de uma forma mais tranquila? 

SLM - Exatamente. Você falou tudo: é cultivar consciência. Por exemplo, como eu cultivo consciência, agora que eu estou vivo? Uma boa pergunta para cultivar consciência: como a minha família lidou com a perda de pessoas queridas? Essa é uma pergunta muito boa. Começa com a família. Como foi o clima quando meu avô faleceu, ou o vizinho querido, o melhor amigo do meu pai, como foi o clima? Esse é o início. Daí tem perguntas de consciência de como eu lido com dor, por exemplo. Dores físicas. E será que eu busco, nas minhas meditações ou nos cursos que eu realizo, um escape da dor?  Ou será que tem um caminho no meio, onde eu posso não aguentar a dor, mas ser maior do que ela, sem negar a existência dela, mas desenvolver uma consciência de que, se eu me expor para isso, sem negar, ela não vai me engolir. Esse é o caminho do meio. É sentir o medo e seguir adiante. A meditação no Retiro Urbano, por exemplo, é uma aprendizagem de consciência. Mas é [passo] de tartaruga. É lento. As lebres sofrem no bardo, esse eu não tenho dúvida. 

CO - É melhor ser tartaruga...

SLM - Yeah, e começa agora porque quando a gente fala de prática não é ensaio. É prática no sentido de começar agora a cultivar as suas habilidades para aquele momento. E para outros momentos que surgem. Você falou a chave: é pela consciência porque provavelmente a gente já tem muita matéria-prima acontecendo. Reações, na forma de resistências, na hora de uma mudança. E reconhecer o instinto, e ter consciência do instinto, é chave para progredir. Se pular essa parte, vai ser duro. 

CO - Vai ser mais difícil.

SLM - Esse é o desafio do caminho espiritual: lidar com instabilidade e reconhecer o automático [em nós]. E ter uma mentalidade que é slow [devagar], de uma aprendizagem que começa com aquilo que a gente não quer. E aos poucos descobrindo o que é que sustenta esse instinto. E é algo escondido, assim como o Buda descobriu.

CO - Como você vê o corpo nesse processo? Como a consciência corporal nos ajuda nesse processo?

SLM - A consciência corporal ajuda em dois pontos: o primeiro é que na consciência corporal você vai adquirindo a capacidade de lidar com as sensações que já estão aqui, sejam quais forem. E, aos poucos, aprende uma maneira gentil de receber o que está aqui. E o segundo ponto - e esse talvez seja o mais importante para a morte - é reconhecer o outro, que tem outros corpos. Por exemplo você, Carla, é outra pessoa. A gente tem algo em comum só que me faz muito bem quando eu amplio as minhas fronteiras para incluir o mistério que é Carla. E lembrar que a vida não gira em volta desse minha vivência. E requer esforço para eu expandir e aprender a ser resiliente, diplomático, ter adaptabilidade, ter empatia e compaixão, ter paciência, né. Saber como não agir. E sabedoria. Então todas essas características surgem não de um mundinho da consciência corporal, eu com a minha prática, mas surgem de uma vida que é rica de saber que não é sobre eu.

CO - São muitas habilidades para serem treinadas. Não que eu não exista, mas é um estar aqui de uma outra forma, consciente e integrada com tudo.

SLM - Exatamente. O fato de que você está me escutando e entendendo o que eu estou falando é saudável. Fortalece o senso de que “yeah, eu sei o que eu estou falando”. E isso é saudável para a minha história, a base da minha saúde emocional. E quando eu escuto você e você reconhece, você sente “ele me entende” e isso também alimenta um senso saudável dentro da Carla. Isso é a base. A questão é quando a nossa identidade, a nossa história saudável se torna fixa. Daí o negócio começa a encrencar.

CO - Tem que ter fluidez.

SLM - Eu acho que tirar o tapete por baixo dessas histórias fixas, assim que a gente adquire uma história, faz bem. E estamos numa época agora que a identidade está de volta.Os filósofos estão falando sobre isso de novo, as tradições espirituais têm um papel muito importante nisso, mas você falou de novo uma pura verdade: não é uma questão de anular o ego, a ideia é cuidar da nossa história para que aquilo que dá vida dentro da gente possa transbordar. Acho que o estado de não apego é um estado de abundância. Não é de zero, vazio. É que a gente viveu e a passagem ao final é suave porque estamos preenchidos. 

CO - Que lindo, Stephen, muito bonito. O nosso tempo está acabando e se você quiser encerrar com alguma mensagem, fica muito à vontade. 

SLM -  Yeah. Eu quero encerrar com alguma coisa. Eu tô um pouco preocupado com essa mensagem sobre a morte, é tipo “não dá para evitar a morte”. Tipo fria. Porque é uma verdade, não dá para evitar a morte. E o Buda, a gente ouviu, ele falou: “daqui a pouco vai ser jogado no chão etc”. Mas também o que ele falou foi: “Todos treinam diante da punição. Todos temem a morte. Já a vida é querida por todos”. Então, compaixão junto com a verdade é essencial. Se a gente não tem compaixão com esse assunto, não vai ter “escuta”, aquele linda ressonância respeitosa. Porque quando a gente perde alguém querida é muito muito, muito difícil, a gente sabe disso. Então a mensagem, por exemplo, da impermanência, traz sim, uma verdade. Mas ela também lembra que quando alguém tá sofrendo com isso, não é de se dizer pra pessoa “olha, não tem como evitar a morte, sabe”. É de ressoar, de vibrar com a pessoa, de dar um abraço, talvez até virtual. E até talvez dizer “é muito, muito difícil, eu te entendo”. É muito mais importante essa ressonância de entrar na dificuldade e conhecer, “eu sei o que está acontecendo”, do que simplesmente falar a verdade. É muito mais benéfico. Esse eu acho que é a mensagem porque tem muitas pessoas, nossa, eu nunca lembro de abrir o jornal e ver tantas pessoas queridas indo embora. E uma pessoa que morre, é um desastre. Uma pessoa é uma perda grande.



Para assistir à conversa pelo Instagram, aqui está o link:

https://www.instagram.com/tv/CDKci-pHSNB/?utm_source=ig_web_copy_link

 





3 comentários:

  1. Lídice querida, obrigada pelo carinho e trabalho ao transcrever e editar nosso bate-papo. Que muitas pessoas possam se beneficiar com os ensinamentos que Stephen Little nos passou. Grande abraço.

    ResponderExcluir
  2. Foi um grande prazer a criação dessa parceria, Carla! Muito, muito obrigada por tudo!

    ResponderExcluir
  3. Foi muito agradável e esclarecedor.
    Uma belíssima mensagem.

    ResponderExcluir