domingo, 7 de agosto de 2016

O rio e as margens de José Geraldo Couto


Esse texto que eu amo (e, por isso, o transcrevo abaixo), "O rio e as margens", foi publicado em 01 de maio de 2010 na Folha de São Paulo, jornal em que o crítico de cinema e jornalista José Geraldo Couto trabalhou por mais de 20 anos:

"Cada pessoa reage de um modo diferente a situações de pressão. Disso resultam em grande parte a diversidade, o fascínio e também as dificuldades e os perigos da convivência humana. Tudo isso para falar de Diego Souza e sua reação desaforada e intempestiva às vaias que parte da torcida palmeirense dirigia a ele no Parque Antarctica na noite de anteontem.
Longe de querer justificar ou, ao contrário, condenar os gestos desse tipo, sempre procuro me colocar por um momento no lugar do personagem em questão. Recentemente, por exemplo, Ronaldo, conhecido por sua educação e simpatia, mostrou o dedo médio em riste para torcedores que o hostilizavam à saída de um jogo. Dodô, quando ainda atuava no São Paulo, mandou uma 'banana' para a torcida tricolor que o vinha vaiando sistematicamente. Sem pensar muito no assunto, na época, cheguei a defender o desaforo do jogador como uma atitude humana, demasiado humana.
Há um poema de Brecht que considero iluminador. Diz algo como: 'Do rio que transborda, arrastando e destruindo tudo à sua volta, diz-se violento. Mas ninguém chama de violentas as margens que o comprimem'. Embora de intenção política, o poema vale também para a psicologia individual, para o caráter mais ou menos legítimo de desabafos, explosões de fúria, situações em que o sujeito transborda, 'sai de si'. Desde que não causem dano direto a outras pessoas, perdoamos essas explosões porque nos identificamos com elas, sabemos que somos passíveis de fazer algo parecido dependendo da situação. É fácil dizer: 'Mas um atleta profissional tem que estar preparado para enfrentar a pressão da torcida, a cobrança dos dirigentes, o assédio da mídia'. Muito mais difícil é, numa situação correlata, manter os nervos no lugar.
Cada indivíduo tem um pavio de tamanho diferente. Admiro a frieza e o 'savoir faire' de certos craques, que parecem crescer em contextos adversos. Romário é o caso supremo. Dava a impressão de até gostar de ser provocado, insultado, caçoado. Isso parecia aguçar seus instintos matadores. Lembro-me de um Corinthians x Flamengo, no Pacaembu, nos anos 90, quando o craque atuava pelo rubro-negro. Toda vez que ele pegava na bola, a Fiel o saudava com o coro de 'Romário, veado'. Meu filho, então com uns oito anos, e corintiano como eu, aderiu alegremente ao coro, servindo-se daquela lei tácita das arquibancadas que permite às crianças falarem palavrão na frente dos adultos e vice-versa. Eu só disse a ele: 'Não provoca a fera'.
Dito e feito. Flamengo 2 a 1, com dois gols de Romário. Em cada um deles, o craque correu perto do alambrado com a mão em concha em torno do ouvido, pedindo com a outra que a torcida elevasse o volume das vaias. Foi arrepiante. Uma coisa é admirar a frieza de Romário, outra exigir que um Diego Souza tenha a mesma reação. Simplesmente porque ele é Diego Souza, não Romário. É aí que entra a psicologia, de certo modo a ciência que estuda os limites de cada indivíduo e o melhor modo de lidar com eles. Mas, no mundo do futebol, ainda há quem ache que psicologia é frescura."

* transcrição do artigo "O rio e as margens", de José Geraldo Couto)