quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Como realizar o impossível


Essa é a redação da CNN em Atlanta. A emissora a que todos assistem quando querem se informar estreou nos Estados Unidos em junho de 1980 debaixo de descrédito e zombaria: ninguém apostava no conceito de 24 horas de telejornalismo no ar. Seu líder, o empresário e esportista americano Ted Turner, tinha na equipe um bando de indomáveis.

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"Vou fazer isso porque um monte de gente dos altos escalões riu de mim. Fiquem de olho. Sou como um buldogue, que morde e não larga mais. Sabe por que meu veleiro de competição chama Tenacious, cara? Porque eu nunca desisto. Tenho várias bandeiras em meu barco, mas nenhuma branca. Eu nunca me rendo", disse Turner à PLAYBOY.


Uma década depois, a emissora de Turner virou a mais importante rede internacional de notícias, famosa pela cobertura ao vivo dos grandes acontecimentos mundiais.



"Eu só queria ver se era possível chegar lá - como Cristóvão Colombo. Quando se cria algo que jamais foi feito antes, quando se navega por mares não mapeados sem ter certeza do destino, sem saber o que pode ser encontrado no final da jornada, pelo menos a gente está seguindo para algum lugar".

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Quem conta essa história é o jornalista e escritor americano Hank Whittemore, no livro CNN - A História Real, da editora Best-Seller (à venda na Estante Virtual). 

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Dicionários para colecionar: Dificuldades da Língua

Dificuldades com a língua portuguesa?


O Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, do gramático e tradutor Domingos Paschoal Cegalla, explica, por exemplo, quando devemos escrever "Santo" e "São".

Usa-se "Santo" antes de nomes iniciados por vogal (como Santo Antônio). Antes de nomes iniciados por consoantes, usa-se São (como São Francisco ou São José).

Fosfeno é cultura


Jornalista feliz é o que está sempre aprendendo palavras novas. Hoje descobri que FOSFENO significa aquela sensação luminosa provocada por outro agente que não a luz (pressão sobre o globo ocular ou estímulo elétrico).

Toque de mestre com João Cabral de Melo Neto

Qualé o texto que você mais gosta? "Eu prefiro o seco, porque é contundente", ensina o poeta e diplomata pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

Inêz Cabral e o pai, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto

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"Editar é cortar palavras", dizem os bons. Essa tesourinha aí deve ser sua amiga. O texto tá chato? Corte sem dó. Tá delicioso, mas é longo? Corte com tato. Pra que "ficar no ar" mais tempo do que o necessário? Desapega.


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Miniperfil Klester Cavalcanti: o jornalismo e o medo

Antes de escrever Dias de Inferno na Síria, sobre sua experiência de ter sido preso pelo governo sírio em 2012, durante uma cobertura de guerra naquele país, o pernambucano Klester Cavalcanti já tinha publicado Direto da Selva, Viúvas da Terra (Prêmio Jabuti de Literatura 2005) e O Nome da Morte (Prêmio Jabuti de Literatura 2007). Perguntei sobre sua relação com o medo. "O medo me dá prazer", ele disse.

Eu e Kléster durante nosso papo, no dia 11 de fevereiro

Antes de receber o diploma de jornalista da Universidade Católica de Pernambuco, em 1997, Klester já era engenheiro mecânico formado pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1991. Depois da viagem à Síria, ele vive enfatizando. "Não sou correspondente de guerra. Sou jornalista, que faz de tudo". Inclusive saltar do maior bungee jump do Brasil, com 86 metros, em Paulo Afonso (BA).


"Prefiro me arriscar do que ficar frustrado depois"


 Nas 285 páginas do livro, Klester descreve sua experiência com tantos detalhes que parece que a gente está vendo um filme. Com prefácio de Caco Barcellos, a obra rendeu mais um jabutizinho para a coleção do autor.


Nesta entrevista gravada em 11 de fevereiro de 2015, Klester Cavalcanti fala sobre as qualidades de um repórter de guerra e sua relação com o medo. Conta sua primeira aventura em alto mar e a reflexão que faz cada vez que salta de bungee jump.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Afirmar é melhor que negar


Quanto menos "não" no seu texto, melhor. Como aprendi isso há anos, esqueci a explicação exata. Mas é ciência. Funciona mais ou menos assim: o cérebro dá "duas voltas" para processar a palavra não. Repare como fica diferente.

Se você quer dizer: "Não estou com fome".
Escreva: "Estou sem fome".

Se você quer dizer: "Você não fez a coisa certa".
Escreva: "Você fez a coisa errada".

Se você quer dizer: "É muito difícil não reagir".
Escreva: "É fácil reagir".

Lembre-se: escrever é pensar. Ser positivo ajuda no texto - e na vida. E nas situações em que for impossível retirar o não de uma frase, mantenha-o. Serão poucas.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Dicionários para colecionar: O Pai dos Burros


De Humberto Werneck, O Pai dos Burros (editora Arquipélago) reúne clichês e lugares-comuns que o jornalista cuidadoso evita. A lista é poderosa. "Matar dois coelhos com uma cajadada só" é o meu preferido na letra M. "Caiu na rede, é peixe", na letra P.

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"Os clichês têm origem no 'medo do desconhecido', no conforto medíocre de quem, preferindo não arriscar, se basta com fórmulas prontas", afirma o jornalista norte-americano H. L. Mencken, citado na introdução do livro. "Se escrever vale a pena, deve ser para enunciar algo que se pretende novo - e me parece um contrassenso, sobretudo no jornalismo, tentar passar o novo com uma linguagem velha", arremata Werneck (para ler as crônicas de Humberto Werneck no Estadão clique aqui).

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Biblioteca básica: A Coragem de Criar


"Devemos soltar completamente as rédeas? Ousar pensar o que não pode ser pensado?"

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No livro A Coragem de Criar (Nova Fronteira, encontrado na Estante Virtual), o psicanalista americano Rollo May desata nós da criatividade: "Precisamos combater duramente o preconceito de que o talento é uma doença e a criatividade uma neurose".

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Outra boa ideia defendida por May desde 1975 - e que podemos aplicar no jornalismo - é essa: "A imaginação é a extrapolação da mente. É a capacidade que tem o indivíduo de aceitar o bombardeio de imagens, ideias, impulsos e toda a sorte de fenômenos psíquicos vindos do pré-consciente. É a coragem de soltar as amarras do navio, na esperança de encontrar outros portos na vastidão do mar."


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Liberdade para escrever


Concordo com Joaquim Ferreira dos Santos: escrever em português, sem o vício de encaixar palavras em inglês, para "sofisticar" o texto, é libertador. Veja outros segredos da boa redação em "Escrever", dele (basta clicar aqui).


Meu primeiro texto em versão digital


Nesse post reproduzo o texto da minha primeira reportagem (jornal O Nacional, 1987). Para uma jovem de 19 anos que amava o skate, escrever 15 mil caracteres foi impressionante, naquela época! A surpresa é ver que ele continua atual. Troque os skinheads pelos black blocs, por exemplo, e veja que o retrato que eu trouxe da rua foi um dos mais completos sobre um movimento jovem no Brasil.

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"Os Revoltados Carecas do Subúrbio"
Eles foram notícia há um mês, quando ameaçaram "quebrar tudo" por não poderem pagar para ver o show dos Ramones. Já devem ser uns 200, espalhados pela Zona Leste e ABC, São Paulo. São os carecas do subúrbio, que raspam a cabeça contra "o sistema". Muitos andam armados (arma branca). Mas se alguém os acusa de violência, respondem como a careca Márcia, 22 anos, operária de uma confecção: o fruto da violência suburbana "não vai ser nunca um bichinho de pelúcia"

Reportagem de Lidice Severiano da Silva
Fotos de Marisa Uchiyama

- Vocês deram sorte de conseguir esta matéria - fala Gordão, careca antigo no movimento. - A gente decidiu que não ia mais dar entrevista, nós não queremos publicidade, senão vai acabar com o movimento, essa futricação. Só estamos dando porque O NACIONAL é um jornal independente, que a gente não conhecia e gostamos da cara dele, pelo menos não é um jornal burguês, como o Estadão. Tão querendo fazer uma reportagem com a gente, mas a mina vai ver o não que ela vai ter na cara.

Gordão tem 22 anos e está no movimento há quase sete. Trabalha de mecânico numa oficina da região da avenida Paulista e ganha 2.000 cruzados por mês. Mora em Aracaré, região entre São Paulo e Mogi das Cruzes, onde vive a maioria dos carecas de subúrbio, a 50 minutos da estação Roosevelt, no Centro.

ATÉ METRALHADORA A POLÍCIA USOU

Conversar com eles não é mesmo muito fácil.
- Tem saído umas reportagens aí, com umas ideias erradas sobre a gente, não estamos gostando desse negócio - explica Coquinho, um dos organizadores da passeata que eles vão fazer no dia 1º de Maio, para protestar "contra a fome, a miséria, a falta de liberdade de expressão dos jovens, as usinas nucleares e principalmente o serviço militar obrigatório", entre outras coisas.
Essas reportagens a que Coquinho se refere saíram nos jornais Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde, e nas revistas Yeah (de skate) e Crics (revista jovem). Segundo Coquinho, "estão pichando os carecas injustamente pelo abuso de violência".
Mas por que eles aprontaram no show da banda punk americana Ramones, em São Paulo, no último dia 31 de janeiro?


Até rajada de metralhadora a polícia deu, para conter três dezenas de carecas, com estiletes e machadinhas, que queriam quebrar tudo. Quem rebate a acusação é o Coveiro, que tem 22 anos e é dos mais ativos e antigos do movimento. Não quis ser fotografado. Nem dar o nome. Tem medo que, se algum dia vier a acontecer algo que comprometa os carecas, ele seja envolvido. Trabalha como agente de segurança em uma ferrovia que também não quis identificar "porque pode causar problemas".
- Sabe como é, né? Qualquer coisa que sai nos jornais sobre os carecas, eles ficam de olho. O esquema lá dentro é como um regime militar, tem um monte de regras impostas.

Coveiro explica o caso do Ramones:
- O Ramones é uma banda punk que eu já conheço há anos e que veio para o Brasil numa época em que o punk é moda. Então qualquer boyzinho pode pagar essa grana (300 cruzados) por um show, só que esse show não é pra boy, tinha que ser pros punks, foi uma sacanagem o que eles fizeram! Então deu aquela revolta e a gente foi lá pra quebrar tudo mesmo. Tinha também uma treta particular com os punks da city...
Os carecas do subúrbio são realmente agressivos quando se trata de roqueiros cabeludos "que estão aí até hoje no 'paz e amor', sem nenhum ideal político".
- Fica uma imagem ruim pra nossa juventude, esses jovens drogados, comodistas, eles tinham que se interessar mais pela vida, pelo próprio corpo, pelos problemas do país - continua Coveiro.

UM TEM A MACHADINHA, O OUTRO, A MACHADADA

De cada dez carecas entrevistados, dez não usam droga nenhuma.
- A única droga são as mina - brinca Coquinho.
Não usam drogas, mas usam armas - "só quando vai rolar alguma treta" - garante Coveiro. Usam armas brancas, como facas, estiletes, canivetes, machadinhas.
Quem tem uma machadinha é o Léo, que não é o seu nome, é "o apelido do apelido", Leopardo. Está com 21 anos e quer se garantir. Bem, acreditem que Léo se garante, pois, além de andar com a machadinha, pratica à noite, depois do trabalho, kung-fu, caratê e boxe. Tem um filho pequeno, que até saiu na revista Yeah - conta o pai orgulhoso. Quem o vê na estação Tatuapé do metrô, com todos os amigos, não imagina jamais que Léo seja casado e pai de um menino de três anos.
Ele é um dos poucos que te dá um sorriso gostoso, é moreno e baixinho, usa um bonezinho em cima da careca, simpático mesmo.
- Os caras da city dizem que nós estamos aqui para atrasar o trem das onze e pintar asa branca de preta, mas nós estamos aqui para proclamar a independência do Brasil!
Ele ficou receoso de ser fotografado com a machadinha, mas por fim, cedeu.
Pois é, Léo tem a machadinha, e Gordão tem as machadadas. Mostra as costas cheias de cicatrizes.
- Isso aí foi agora, no "dezembro negro". Todo ano tem uma festa onde se reúnem todas as facções do movimento punk. Então, desde 1983 sempre sai quebra-pau.
Nesse último ano foi no Clube Nacional de São Vicente, litoral paulista. Gordão nem viu quem foi que deu a machadada, mas sabe que foram uns punks.
- Na hora do tumulto você nem vê nada, levei mas também dei.
A imprensa chegou a divulgar a quantidade de carros que eles depredaram, a socos e pontapés. Só não divulgou a cena de alguns policiais exigindo que duas carecas cacarejassem diante deles.
- Eu não conheço essa pena, só sair agora, na nova Constituição - comenta Coveiro.

Aliás, na nova Constituição bem poderia sair uma lei que aumentasse o salário de quem faz horas extras. Moicano, por exemplo, seria o primeiro careca a sentir uma imensa felicidade, porque trabalha das 7 da manhã até às 5 da tarde, para ganhar 1.800 cruzados. Com as horas extras, acaba trabalhando até às 10 da noite, ou seja, 13 horas diárias, para ganhar 1.000 cruzados a mais por mês. Este rapaz tem 25 anos e o trabalho dele é alvejar sacos de pano numa sacaria perto da estação Roosevelt. Então ele fica lá o dia todo, tirando sacos dos sacos e colocando-os nas máquinas de lavar, pendurando para secar, mexendo com o cloro que faz chorar, de tanto que arde nos olhos.
- Os sacos têm é que ficar branquinhos, fala o patrão. Que sacal!

"ME TIROU, EU SOQUEI MESMO!"

Apesar de não se dizerem violentos, os carecas gostam de uma ceninha, são mesmo teatrais. Tipo "este território é meu, não invada se não quiser confusão", referindo-se tanto às minas, das quais têm muito ciúme, quanto às imitações que podem surgir deles. Por exemplo, quando estão andando na rua, não suportam sequer uma olhada mais demorada, já acham que as pessoas estão "tirando", isto é, provocando.
- Me tirou, eu soquei mesmo.
Ou então, alguém desconhecido que esteja na rua, um careca de coturno e suspensórios, andando no visual deles, de operário trabalhador.
- Tem que chegar intimando, senão o nosso visual vai virar moda - Coveiro continua explicando. - Muitas vezes um cara anda no visual e sai por aí fazendo merda, depois vão confundir um carequinha qualquer com os carecas do subúrbio e sobra pra gente.
Os outros grandes inimigos estão na capa de um fanzine feito por eles mesmos, o "Revolta Suburbana", de outubro de 1986. (A palavra fanzine vem das palavras inglesas funny mais magazine, quer dizer, "revistinha engraçada", que mete o pau, satiricamente) A capa daquela tem um homem de braços abertos para a liberdade representada pelo Sol. Ele está de coturno pisando em cima de várias caveiras: clero, burguesia, polícia, aristocracia, metaleiros, capitalismo e até os darks (jovens que vivem de preto movidos a álcool e outras drogas, esperando o Apocalipse). Embaixo, os dizeres:
"Com a destruição de seus inimigos, o ser humano conquista a liberdade."

UM CHEIRO DE PODRIDÃO NO AR

Destruição, agressão, violência, de onde vem tudo isso, é fácil descobrir. More alguém no subúrbio e verá. Eles têm como principal meio de condução os trens do subúrbio, que acabam de matar 36 e ferir 66 pessoas.
- Esses trens são feitos para transporte de gado, são sujos e lotados, o fruto disso aí não vai ser nunca um bichinho de pelúcia - comenta a careca Márcia. - Nesse país só não vê a miséria quem já se acostumou a ela. Mas a gente não se acostuma, não!
Márcia, 22 anos, operária em indústria de confecções, faz esta análise do movimento:
- Já houve várias formas de protesto, o movimento punk, por exemplo, enriqueceu comerciantes e virou moda. Mas nós, carecas, começamos com poucos idealistas e estamos aí para desenvolver a nossa própria mentalidade de protesto, sabendo que toda luta é cansativa. A partir do momento que você tem um ideal, o próximo passo é raspar a cabeça, que é o nosso símbolo de protesto, e quanto mais aumentar a fome e o desemprego, mais aumentará o número de carecas, até que um dia o presidente da República saberá da nossa existência. Ainda não fizemos algo que atingisse os poderosos, mas esse dia chegará, porque continuamos nos organizando. Se há um lado brilhante no movimento é que todos passam por situações difíceis, conhecem a pobreza, a injustiça, sabem como é porque vivem a vida de subúrbio.

Realmente a paisagem suburbana não é das melhores. Estamos em Aracaré. A única diferença boa parece ser o ar, que aparenta não ser tão poluído. Mas as ruas não são asfaltadas, os esgotos não são canalizados. Há um cheiro forte de podridão. Crianças brincam ali, arriscadas a pegar doenças. Mas parece até que o organismo se acostuma. As casas são minúsculas e nelas moram famílias de até dez pessoas ou mais. O lugar à noite é mal-iluminado. Quando cai um temporal, alaga tudo, e costuma morrer gente, sobretudo criancinha afogada.
Quando você desce do trem, tem a impressão de que só existem aquelas casas ali seguindo os trilhos. Mas quando pega uma ruazinha, vira outra, depois outra e dá de cara com um matagal, pode seguir a trilha de terra que mais para frente tem mais casas. É lá que Fernando mora, um careca de 20 anos, atualmente desempregado. A mãe dele diz:
- É um ótimo garoto em casa. Nunca tenho problema com ele.
Fernando mora com a mãe e o pai adotivo. Dona Elza pinta panos de prato e vende cada um por 20 cruzados.
- Dá pra ganhar algum - comenta ela sorrindo e fazendo o jantar.
Seu Irineu é escriturário aposentado.
- O Fernando está de acordo com a geração dele. Na minha época, era o estilo Elvis Presley que se usava, eu conheço essas coisas de juventude, é passageiro.
A casa é um ambiente acolhedor. Apesar da falta de luxo, já foi assaltada três vezes e Fernando nem está estudando porque o colégio é longe e dona Elza tem medo que ele vá mas não volte.
- Esse lugar é violento demais.
Fernando pratica halteres como muitos carecas. É um jovem saudável, forte. Em casa, com os pais, é diferente daquele Fernando do subúrbio, de quando está à vontade com os amigos. Parece mais calmo. Agora está procurando emprego de segurança, já que é tão forte. Mas a mãe não vê mesmo a hora de que ele se case e se acomode.
- A gente quer ver os filhos da gente tudo feliz.

SEGUNDA-FEIRA TRISTE

Será feliz um careca como o Biritiba, 22 anos, que sai de casa para trabalhar todos os dias às 5 da manhã para voltar só às 11 da noite? Ele é tão fechado que não fala nem o necessário. Tem que cumprir esse horário para garantir o emprego como terraplenador. Acha que as pessoas não devem estranhar a violência dos carecas.
- Nossa realidade começa na segunda-feira e ela é triste.
Para alegrar os fins de semana, uma skinhead, Rosana, está batalhando o aluguel de um salão que será pago com a contribuição de todo o mundo. Pode estar nascendo um clube aí. As minas são poucas, mas têm presença marcante, tomam atitude de valente e talvez por isso os carecas sejam tão ciumentos e possessivos.
Simone tem 19 anos e trabalha numa revendedora de peças de automóveis.
- Acho que deveria haver mais garotas interessadas em nossas ideias. Porque quando um careca quer namorar, namora roqueira e a mina não pode ser zoada. A gente tem que andar com ela e não pode fazer nada.

OI, O GRITO DE GUERRA

Simone dá um toque de algumas bandas nacionais que eles curtem, como Garotos Podres, Vírus 27, Histeria, Carecas do Subúrbio; e algumas gringas, como Eskorbuto (Espanha), Nabat (Itália), The 4-Skins e Cockney Rejects (Inglaterra), Oi Polloi (Escócia). Essas bandas fazem um som duro, chamado oi, em resposta agressiva a um sistema que quer punir os que tentam fugir de suas garras, conforme explica o fanzine "A Plebe Punk". Oi é um grito de guerra, como se a pessoa dissesse "atacar".
Simone e Márcia estão começando a preparar um fanzine que futuramente será um jornal onde comentarão sobre todas as facções políticas como o anarquismo, o nazismo, o neo-nazismo, o capitalismo, o socialismo, e por aí afora. Mas terá também a colaboração de todas as outras minas que "querem mostrar pros carecas que elas não são só um enfeite ao lado deles", como a China, que vai escrever no número 1 sobre socialismo. China tem 17 anos e é recepcionista de um jornalzinho de bairro chamado O Cidadão, onde trabalha das 8h às 18h, em Taboão da Serra. China só se deixou fotografar de costas. Uma pena, porque é muito bonita. As carecas não gostam de ser fotografadas. Ninguém chegou espontaneamente na frente da câmera para mostrar o rosto. Não há exibicionismo mas há ambições.
Na reunião que fizeram em Jundiapeba. a 45 minutos de trem do Centro de São Paulo, para discutir sobre a passeata do 1º de Maio, falaram até em entrar para a história do Brasil, não para serem heróis, mas por terem uma organização, por não se misturarem com a burguesia e não perderem a essência da luta suburbana.
- Queremos que as pessoas sintam orgulho ao dizer "eles são carecas, eles lutam por nós, pelo povo" - discursou Coquinho, durante a reunião.
- Ser careca é uma opção de vida. O jovem drogado cai na sarjeta e a sociedade vai rir dele. É isso o que eles querem, essa falta de interesse, essa falta de cultura, essa alienação toda, gente burra pra ser dominada como marionetes. A gente tem que procurar o que queremos nos jornais, na televisão, onde houver informação. Nossa violência não pode ser gratuita, senão as pessoas nunca darão ponto pra gente.

"ISTO AQUI NÃO É MAIS UMA GANGUE"

No fundo, no fundo, formam um grupo muito unido e dá para sentir afeto entre eles só pela maneira com que se cumprimentam, aquele aperto forte de mão, um empurrãozinho de ombro, um sorriso na cara. Brincam de brigar, ficam "socando" um ao outro. Se alguém está com problemas ou se mete em encrenca, todos ajudam sem piscar o olho. A solidariedade é grande.
Toninho, 27 anos, ajudante-geral em um jornal que ele prefere não identificar, foi quem começou a organizar o movimento, junto com o Coveiro. Criaram uma base. Fala como se dissesse tudo de mais importante que há para ser dito:
- Isso aqui não é mais uma gangue, isso foi nos tempos e moleque, agora o negócio é sério, não estamos brincando, não, e temos que fazer a cabeça dos mais novos que entram e que geralmente gostam de arrumar confusão. Veja esse aqui, aquele ali, aquela outra - diz, apontando para qualquer lado. - Eles são como irmãos para mim. Se fico muito tempo sem encontrá-los, fico doente, esta é a minha família, ela está aqui, ó - e aponta para todos.
P.S. - Onde se lê Gordão, não é Gordão, mas o personagem prefere não dar o nome nem o apelido dizendo que "é melhor para todos nós". A reportagem estava escrita quando chegou a notícia de que os carecas do subúrbio finalmente concordaram em falar ao Estadão.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Calipígia é cultura


Jornalista feliz é o que está sempre aprendendo palavras novas. Hoje descobri que CALIPÍGIA significa pessoa com belas nádegas. Vi no texto do escritor e jornalista Joaquim Ferreira dos Santos sobre a bunda da atriz Paolla Oliveira. Para ler, clique aqui.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O dia que eu virei jornalista


Segunda-feira, 02 de fevereiro de 1987:
Com 19 anos, saio de casa para o meu primeiro dia de trabalho na sucursal do jornal carioca O Nacional achando que vou ser produtora, secretária ou algo assim.
Dirijo minha Vespa azul prateada a caminho do semanário dirigido pelo jornalista Tarso de Castro (pai de João Vicente de Castro, um dos comediantes do Porta dos Fundos).
Na redação paulistana trabalham meu pai, Mylton Severiano da Silva, Alex Solnik e outros feras como Cláudio Abramo - que ia pouco à redação, de carona com Solnik.
Naquela manhã em que eu cheguei esbaforida, insegura por causa da nova ocupação, encontrei meu pai e a fotógrafa Marisa Uchiyama falando dessa notícia da Folha:


Skinheads tentam invadir o Palace, em São Paulo, armados de facas, estiletes e pedras

Na Folha tinha uma foto dos carecas deitados na rua, algemados de barriga para baixo. "E a versão deles? Isso é a matéria! Será que conseguimos?", meu pai provocou

Eu tinha uns chegados que conheciam os skinheads, podiam ajudar. "Então você faz a matéria", Mylton Severiano decidiu. Daí fiz. Com a fotógrafa Marisa, passei uma manhã em Itaquera com os carecas, fui ver onde viviam, o que pensavam, quem eram, afinal. Rendeu página espelhada (aquela que fica ao lado uma da outra) e chamada na capa.

Na capa, ganhei janela (à direita): a reportagem foi editada no Rio pelo Palmério Dória


Detalhe da capa em destaque: estreei no time de Tarso de Castro e Cláudio Abramo


                                      A página espelhada: uma ao lado da outra para dar destaque



Minha assinatura de estreante: Lidice Severiano da Silva. 
A aranha no detalhe dessa paginação foi tirada do pescoço de uma skinhead. 
Depois dessa matéria, vieram várias outras - até que o jornal fechou. Tristeza.